Ele viveu como uma mulher trans, mas voltou a se identificar como homem
Felipe Mortari viveu cinco dos seus 32 anos se identificando como Luana. Viu-se no mundo da prostituição, aplicou silicone industrial no corpo e fez uso de hormônios para ter os traços mais femininos. Viveu todas as formas de preconceito que pessoas negras e trans já listaram incontáveis vezes. E sentiu dor em todas elas.
Também por isso, voltou a viver como Felipe. Hoje, tem uma filha de 2 anos e trabalha na área social. E diz que está melhor assim.
Natural de São Paulo, Felipe conta a Universa que o primeiro prejulgamento que sofreu na vida foi dentro de casa, ao se assumir gay. Resolveu viver só.
Ele gostava de atuar como drag queen, e fazia alguns shows na noite. Passou a ter o trabalho reconhecido.
"Comecei a sair montado para as festas, e os elogios que recebia me faziam bem diante dos preconceitos. Eu me sentia mais bonito e valorizado. Era a minha válvula de escape", ele conta ao telefone, referindo-se a si próprio com o artigo masculino.
"Como me transformei em Luana"
Junto aos elogios, Felipe começou a receber propostas para "ganhar muito dinheiro com a prostituição", ele resume. E empolgado, mudou-se para a casa de uma cafetina e passou a fazer programas.
"De fato, comecei a ganhar dinheiro. E essa cafetina me incentivava a colocar silicone, transformar o meu corpo, porque assim, ela prometia, eu ganharia mais. Em um ano, coloquei tudo: aumentei seios, bumbum, coxa, coloquei cabelo longo. E me sentia bonita. Para mim, estava tudo certo."
Nem tudo. As ofertas aumentavam de todos os lados, inclusive para consumir e vender drogas. Mas Felipe diz que, além de não ter tomado "nada errado", não gostava da ideia.
E veio com isso a vontade de estudar para sair do meio e trabalhar em outro ramo. Desde pequeno, era o sonho de Felipe atuar com serviços sociais, e aos 20 se matriculou numa faculdade, como Luana. Mas ela não foi bem aceita ali, e trancou o curso logo no segundo semestre.
Também sofreu rejeição nos locais onde buscava trabalho. Àquela altura, a família, que já não concordava com a sua sexualidade, não queria vê-lo no corpo de uma mulher.
"Me senti horrível e saí"
Ainda como Luana, buscou acolhimento onde para ela a ajuda seria óbvia: em comunidades LGBTQ+. Felipe fala que tentou, em palestras e encontros sobre o tema, além de grupos na internet, pedir ajuda para conseguir trabalho e sair da prostituição. Mas diz que se decepcionou quando não lhe estenderam a mão.
"Quando busquei ajuda, muitas pessoas no meio tentaram me convencer de que a prostituição era a única opção para pessoas como eu. Fui num centro que atende pessoas trans, e uma assistente social falou que eu não tinha que me sentir mal por fazer programa, que era normal. Eu só queria sair do meio, trabalhar e estudar."
Com as portas fechadas e decidido a mudar de vida, Felipe fala que colocou na balança o que seria mais importante: ser aceito ou realizar seu objetivo profissional. Para ele, só tinha uma dessas opções.
"Não poderia esperar 30 anos para a sociedade me aceitar. A realidade é que não tem trabalho nem espaço para as pessoas trans. E eu queria ter uma família e viver o dia a dia sem que ninguém me olhasse torto. Entendi que — no meu caso, que fique claro — ser trans me impedia de fazer isso. Na verdade, eu enxerguei que me identifiquei como trans por status", analisa.
E tomou uma decisão.
Já que não posso seguir meus objetivos sendo quem eu era naquele momento, voltaria a ser o Felipe
Para essa nova etapa, Felipe diz que procurou as mesmas pessoas para quem pediu ajuda antes. Agora, ele queria atendimento para "voltar à aparência masculina", tirar o silicone e "limpar" o efeito dos hormônios femininos que tomava por conta própria.
"Dessa vez, vi o preconceito também nesse meio. Ouvi que meu 'problema' era psicológico, e que não ajudariam uma pessoa a destransicionar. Nos postos de saúde que atendem o público trans também me falaram que não fazem o inverso".
Como Felipe, passou a ser aceito
Mesmo assim, Felipe deixou a prostituição e foi morar longe do centro, em Itaquaquecetuba, na região metropolitana, junto com uma amiga. Aos 25 e já se apresentando como Felipe novamente, voltou para a faculdade. Ele conta que dessa vez não mais percebia olhares de reprovação.
Também conseguiu emprego. Hoje, atua como orientador educativo em um albergue para homens. Outra mudança: resolveu se afastar da comunidade LGBTQ+. E atenta para o fato de que o movimento o decepcionou quanto ao que ele esperava. Para explicar, frisa que cada pessoa tem sua particularidade.
"Como trans, nunca tive oportunidades, mas não sei se seria diferente caso fosse acolhido. Eu vi falta de união, além de preconceito no meio, entre trans e gays. Mas claro que existem histórias boas. O meu contato com a comunidade foi negativo, mas entendo e reconheço a luta deles. Só não sou militante mais."
"Contarei tudo para a minha filha"
Além de ter conseguido seguir com os estudos e arrumado emprego, Felipe foi acolhido pela família novamente. Hoje, ele mora com a avó e a filha Valentina, de 2 anos.
A menina é filha de uma amiga que ele ajudou financeiramente por um tempo. A mãe escolheu não ter mais contato com ela após o nascimento — e Felipe a registrou.
Quando a menina crescer, Felipe contará cada detalhe dessa experiência. Garante que também a apoiará em suas decisões. Mas com ponderações. Para ele, uma criança não deve passar pelo processo de transição de gênero.
"Deixo minha filha fazer o que quiser. Mas, enquanto criança, não acredito que ela tenha certeza das coisas. Reconheço a disforia, mas é preciso ressaltar que há também a moda, a pressão para você se enquadrar. E a criança é muito influenciada. Se minha filha chegar aos 6 anos e falar algo do tipo, de querer ser menino, vou guardar para quando ela estiver maior e entender os gostos pessoais.
Se eu fui influenciado com 17 anos, o que dizer de uma criança?
Pesquisas mostram que crianças de 17 a 21 meses de vida têm habilidade de se identificar como meninos ou meninas e, entre 6 e 7 anos, têm consciência de que seu gênero permanecerá o mesmo. Mas em algumas delas existe uma incongruência entre o sexo biológico e a identidade de gênero — chamada disforia de gênero.
Mas, antes que se dê início a qualquer processo de readequação de gênero, é preciso que a criança — ou o adulto — passe por uma avaliação médica e psiquiátrica, justamente para não haver arrependimentos nem problemas de saúde. Essa é a opinião do psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo.
"Existem muitos quadros psiquiátricos que podem ter como manifestação uma questão de identidade de gênero. Eles podem, inclusive, fazer com que alguém ache que é transexual, sem que isso seja a realidade. A distinção é muito importante", ele afirmou em reportagem publicada em 2018.
"Gosto de viver assim"
Felipe pontua que está mais feliz hoje. E não sente vontade de voltar a se identificar como Luana, principalmente porque sua vida fluiu melhor e seus desejos foram realizando após a decisão.
"O que quero hoje é sair na rua sem camiseta e ir à praia. E ter barba. Por causa dos hormônios, não tive pelos", diz. "Quanto ao silicone, não tenho coragem de entrar na faca, porque é preciso fazer uma raspagem na região e posso ficar com sequelas. Então resolvo com academia."
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