Como na Peste Negra, Covid-19 põe em risco homossexual, prostituta e gato
Embora a Covid-19 seja, de longe, muito diferente da Peste Negra, pandemia que, no século 14, se alastrou pela Europa e Ásia, onde pode ter causado até 200 milhões de óbitos, em se tratando de impactos sociais o temor é que ela resgate "bodes expiatórios" do passado. O termo é usado para designar quem, injustamente, leva a culpa por problemas da sociedade.
Se na Idade Média entre os "culpados" pela peste estavam os homossexuais, as prostitutas e até os gatos, na atualidade há quem procure associá-los também ao novo coronavirus. Por isso, é importante não espalhar ou acreditar em fake news, além de denunciar qualquer ato de violência (o que inclui os comentários com discurso de ódio na Internet) direcionado a mulheres, LGBTs e animais.
Imprensa, ambientalistas e grupos de direitos humanos do mundo inteiro têm reportado casos a todo o momento. Alguns dos mais recentes envolveram religiosos, como Perry Stone, um pastor americano, e Meir Mazuz, um rabino israelense, que pregaram a seus fiéis que a pandemia é um castigo enviado por Deus contra os homossexuais, e até chineses que sugeriram na internet um massacre de gatos de rua para eliminar o risco de transmissão da doença no país.
Peste impulsionou estigmas e perseguições
No livro "Sexo, Desvio e Danação: As Minorias na Idade Média", Jeffrey Richards, historiador da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, dá vários exemplos de injustiças cometidas durante a Peste Negra por religiosos e civis que descontaram a desgraça nos mais indefesos.
"Em Veneza, assim como em Florença, os homossexuais se tornaram bodes expiatórios para a peste e para o declínio populacional, e eram vistos como um ultraje", conta. "A posição oficial das prostitutas se assemelhava à dos judeus ou à dos leprosos. Todos os três eram cada vez mais segregados. Todos os três eram estimulados a se arrepender e a se regenerar. Como os judeus, as prostitutas desafiavam o ensinamento da Igreja e tinham que ser diferenciadas da população decente."
Por influência das crendices, os gatos, sobretudo os pretos, que poderiam contribuir para o extermínio dos ratos, os — vejam só — principais propagadores da peste, também foram perseguidos e mortos. Tudo porque eram associados ao mal e, portanto, causariam desgraças.
Covid-19 tem ameaçado homossexuais
No Brasil, profissionais que lidam com LGBTs se dizem preocupados e descrevem os desafios da comunidade em meio à pandemia. "Esse será mais um dos estigmas que essas pessoas terão de enfrentar e nós, enquanto profissionais que lidamos com elas, também precisaremos buscar meios e estratégias para combater esse tipo de preconceito", diz Rogério Pedro, presidente da EternamenteSOU, ONG de São Paulo comprometida com ações pró-idosos LGBT.
O abuso psicológico sofrido pelos homossexuais também aumentou e fez disparar a procura deles por serviços emergenciais na área de saúde mental, afirma Bruna Vasques, psicóloga do Centro de Cidadania LGBT Luana Barbosa dos Reis, em São Paulo. "Nesse momento, a gente precisa acolhê-los e falar para a sociedade sobre o tamanho preconceito, discriminação e exclusão que estão sofrendo, principalmente dentro das relações familiares, em quarentena", diz.
Outra psicóloga, Patrícia Oliveira, da ONG Transvest, de Belo Horizonte, acrescenta que o impacto da Covid-19 também é sentido por LGBTs que sobrevivem do trabalho com a prostituição. "A situação de travestis e transexuais se agravou, seja pela associação com a doença ou porque 90% estão sem emprego. Sem ter para onde ir, estão vivendo nas ruas do país onde mais são perseguidas e mortas. Estão completamente vulneráveis e desassistidas", alerta.
Prostitutas relatam sofrimento
Milhares de trabalhadoras sexuais, como preferem ser chamadas as prostitutas, também já enfrentam dificuldades. Taís Leão, uma das coordenadoras do coletivo Clã das Lobas, de assistência social a esse público em Minas Gerais e São Paulo, afirma que a pandemia as "expulsou" do mercado de trabalho e que desconfianças e julgamentos se intensificaram.
"Se sempre fomos vistas como vetores de doenças, com a Covid os clientes sumiram e os que aparecem fazem quase uma entrevista de emprego", conta. "Também estamos sofrendo preconceito ao solicitar direitos básicos para sobreviver, como quando é preciso ir atrás de cestas básicas e auxílios por não haver trabalho. As pessoas se esquecem de que também somos chefes de família, mães e, muitas vezes, as únicas que levam sustento para casa. Estamos à margem da sociedade e descaracterizadas como seres humanos e mulheres."
Sem amparo legal, resta a elas, até o momento, depender de ONGs, pastorais e coletivos. "Para contornar a situação, nos juntamos para conseguir doações e alojamentos. A demanda é grande, mais de 6 mil mulheres têm nos procurado, mas não estamos conseguindo atender a todas e precisamos de muita ajuda", completa Jade*, outra representante do Clã das Lobas.
Gatos abandonados e agredidos
Em Salvador, na Bahia, Maria Cristina Santos, protetora de animais e presidente do Abrigo Animais Aumigos, que tem mais de 1 milhão de seguidores no Instagram, confirma que gatos, que já são normalmente alvos de superstições, rituais e maus-tratos, também não estão sendo poupados do preconceito promovido pelo vírus. Ela responsabiliza por essa situação os boatos e a falta de atenção das pessoas ao lerem notícias sobre casos isolados de felinos que se infectaram.
"O abandono desses animais, assim como de outros, que também estão sendo vítimas de violência, começou aqui no Brasil desde os primeiros dias de coronavírus. Nem os de raça têm escapado", conta. "Alguns também estão sendo apedrejados, porque tiveram, por exemplo, crises de espirro. Uma vez sozinhos, eles não têm como se alimentar. Estamos ajudando vários que estão na rua disputando lixo", diz.
Segundo veterinários, mesmo que os gatos testem positivo para Covid-19 e apresentem sintomas leves da doença, não existe nenhuma evidência científica de que possam infectar pessoas. Pelo contrário: as pesquisas têm mostrado que esses animais (assim como cães e tigres) é que estão suscetíveis à contaminação por seres humanos, mas de forma branda.
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