Sempre é tempo: elas voltaram a estudar e transformaram suas carreiras
Até meados de 1900, as mulheres eram desconsideradas dos Censos educacionais. "Embora o Brasil já dispusesse de ensino superior desde 1808, somente a partir de 1879, o ingresso feminino nas graduações foi permitido", explica a professora Nailda Marinho, fundadora da Sociedade Brasileira de História da Educação. Uma década mais tarde, a médica Rita Lobato Lopes se tornaria a primeira brasileira a se formar no país. A partir daí, o caminho trilhado pelas mulheres rumo à universidade foi longo, mas sem volta.
"Mesmo na falta de políticas que facilitassem isso, terminamos o século 20 mais escolarizadas que os homens", aponta a professora Hildete Pereira de Melo, uma das coordenadoras do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Economia (NPGE) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Segundo o Censo 2018 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), 71,3% das matrículas em graduações são de mulheres. Elas são maioria ainda entre os com ensino superior no mercado de trabalho brasileiro, de acordo com o Indicador Mantenedoras de Ensino Superior (Semesp) - 55,1% do total, na comparação com os homens.
Ao longo dos anos, somaram-se à força das decisões pessoais de estudar, outras conquistas sociais que fizeram com que o acesso ao ensino superior deixasse também de ser datado: a entrada de estudantes mais velhos dobrou de 2013 a 2017, segundo o INEP. Isso pode ser explicado por uma combinação de fatores, entre eles, a ampliação das formas de estudo como o ensino à distância (EAD). Contam também o aumento da liberdade e da confiança para mudar de uma carreira a outra conforme ficamos mais velhos.
Conheça histórias de mulheres que fizeram da sala de aula o ponto de partida para novas perspectivas.
Faculdade de nutrição aos 60 anos
"Costumo dizer que fui do luxo ao lixo", conta bem humorada, Nagila Zein Zeit, técnica em nutrição e estudante do sexto período da graduação na mesma área, aos 60 anos. A colocação remete ao seu passado trabalhando em grande grifes de luxo, que hoje nada tem a ver com suas aulas em que não se descartam nem as cascas dos alimentos.
De origem libanesa, ela cresceu em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, onde, nos anos 90, chegou a cursar administração. "Era uma aluna dedicada, amava o que fazia", lembra. "Daí veio o plano Collor e nossa vida virou de cabeça para baixo." A fábrica de sapatos do marido faliu. Com bens confiscados, Nagila trancou a faculdade. Sem o diploma, seguiu trabalhando com gestão e recebeu uma proposta de trabalho no Rio de Janeiro. O casal se mudou e viveu no Rio até 2014, quando a mãe de Nagila adoeceu e ela resolveu que era hora de voltar para Ribeirão.
"Tinha muita bagagem profissional e a certeza de que me recolocaria", conta. Mas os 55 anos pesaram. "A cada entrevista vinha uma desculpa diferente, seguida da mesma negativa ao fim." Desanimada, resolveu que faria algo completamente diferente. E assim começou a trajetória como nutricionista.
Aos 57 anos, se formou técnica e prestou ENEM. A nota alta proporcionou uma bolsa de estudos e então, quase duas décadas mais tarde, Nagila voltou para à universidade. Atualmente, trabalha em uma rede de padarias da cidade, de onde está afastada por ser grupo de risco para a Covid-19. As aulas presenciais também foram substituídas por ensino online em função da pandemia. E ela já tem planos para depois do diploma, quando pretende se aprofundar nas soluções tecnológicas de sua área.
A médica que virou executiva de tecnologia
Filha de uma profissional de educação física formada na primeira turma da Universidade de São Paulo (USP), Ana Claudia Pinto, 55, sempre teve muita sede de conhecimento. Porém, quem a vê tratando com desenvoltura de assuntos relativos aos produtos e serviços da Share Care, empresa de tecnologia para área de saúde, talvez não imagine que ela seja médica endocrinologista. "Antes da virada para o mundo corporativo, eu tinha um perfil completamente acadêmico", lembra Ana. Os primeiros anos depois de formada foram dedicados ao consultório, ao trabalho no Beneficência Portuguesa onde ajudou a montar o serviço de residência, e à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde lecionava.
Até que em 1999, quando Claudia tinha 35 anos, a operadora Care Plus a convidou para fazer parte de sua equipe médica, se reportando a outra profissional de medicina, que exercia a gestão executiva. Antes mesmo da operadora se lançar, a chefe deixou a empresa e Ana Claudia foi convidada a assumir a liderança. "Nesta época, não sabia nem que empresas tinham CNPJ", lembra. "Aceitei porque entendi que nessa atividade eu conseguiria beneficiar mais gente."
Ana Claudia se matriculou, então, em um MBA Executivo em Administração. Com o apoio do marido, profissional de TI, e com a experiência acumulada nas diversas empresas pelas quais passou, adotou a tecnologia em seu dia a dia no consultório, onde ainda atende uma vez por semana. "Considero que, ao me tornar mais executiva que médica, pude unir todas as minhas paixões".
Diploma de advogada, 23 anos depois
Estudar direito sempre foi o desejo da paraibana Patricia Favela, 39. Ela e sua família se mudaram de Campina Grande para São Paulo há algumas décadas, em busca de vida melhor. Primogênita de quatro irmãos, era ela quem os cuidava enquanto o pai, pedreiro, e a mãe, camareira, trabalhavam.
Ainda no ensino médio, Patricia engravidou de Giovanna, sua filha mais velha, hoje com 21 anos. Sem instrução escolar, ela e o marido se dedicaram a trabalhos diversos para sustentar a criança. "Eram jornadas exaustivas, que foram um estímulo para eu correr atrás de um emprego mais estável e um diploma", conta.
Aos 23 anos, Patricia entrou para a Guarda Civil Metropolitana de São Paulo (GCM) e voltou a sonhar com a carreira jurídica. "Só que tínhamos filha pequena e aluguel para pagar", lembra. Então vieram os outros dois filhos, Pedro Henrique, 14, e Helena, 10. Os estudos seguiram postergados até que Giovanna, aos 16 anos, se inscreveu no ENEM. Patricia decidiu tentar também e acabou conquistando uma bolsa pelo Prouni.
Com total apoio da família e de promotoras e advogadas com quem convivia, ela se tornou caloura do curso de direito em 2015. "Aos 35 anos, com três filhos, não sem medo, mas com muita vontade, fui estudar", diz. Formada e aprovada na primeira fase da OAB, Patricia atualmente faz parte do Guardiã Maria da Penha, projeto da GCM que fiscaliza o cumprimento de medidas protetivas e tem atuação direta na assistência a vítimas de violência doméstica. E já está matriculada em uma pós-graduação em direito constitucional, que desta vez deve fazer no modo à distância.
"A faculdade ampliou minha visão de mundo, me deu mais confiança para atender as vítimas e garantir a elas que há caminhos e esperança para saírem da situação de violência", conta a advogada, que segue atuando na linha de frente da Covid-19, combatendo outro efeito perverso da pandemia: o crescimento das agressões contra mulheres.
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