Topo

Fundadora das Mães da Sé mantém a esperança de encontrar filha após 26 anos

Ivanise Esperidião ao lado de outras mães de filhos desaparecidos na Praça da Sé, em 2017 - Reprodução
Ivanise Esperidião ao lado de outras mães de filhos desaparecidos na Praça da Sé, em 2017 Imagem: Reprodução

Diana Carvalho

Colaboração para Universa

10/05/2020 04h00

O ano era 1995. A internet brasileira ainda dava seus primeiros passos. Grupos não eram formados pelo Facebook, muito menos em conversas no WhatsApp. Nem o Bate-Papo UOL existia naquela época. Imagine qual deveria ser o caminho para que uma campanha ou um pedido de ajuda atingisse o maior número possível de pessoas.

Foi neste cenário que Ivanise Esperidião, 58, deu início a um dos maiores movimentos de busca por filhos desaparecidos no Brasil. A filha de 13 anos, Fabiana, havia sumido pouco antes do Natal. Três meses depois, em 31 de março do ano seguinte, a alagoana reuniu mais de 100 mulheres nas escadarias da praça da Sé, munidas de cartazes e fotos, para tentar descobrir o que aconteceu com a jovem e outras crianças desde que suas mães a viram pela última vez.

O grupo ficou conhecido como Mães da Sé e deu nome à associação que atua há 26 anos na busca por crianças e adolescentes desaparecidos. Hoje, conta com as redes sociais como principal ferramenta de trabalho e já localizou mais de 5 mil pessoas pelo país. Seu banco de dados possui 11 mil cadastros.

Por ano, no Brasil, são registrados, em média, 50 mil casos de desaparecimentos de crianças e adolescentes. Estima-se ainda que quase 250 mil estejam desaparecidos. Só em São Paulo desaparecem 23 crianças por dia.

Neste Dia das Mães, Ivanise conta como conseguiu transformar a dor em força para lutar pela filha e por outras mulheres que compartilham o mesmo trauma. A esperança é o que a motiva diariamente.

Sua filha, Fabiana, desapareceu no dia 23 de dezembro de 1995. Perto do Natal. Imagino que, assim como o Dia das Mães, seja um período muito doloroso.

Como todos os dias. O tempo vai passando, e a saudade só aumenta. Assim como a dor. Eu nunca esperei que fosse passar o 26º dia das mães sem a minha filha... Quando ela desapareceu, estávamos numa semana de faxina em casa, nos preparando para o Natal, como muitas famílias fazem. Mas foi um dia atípico. Eu acordei com uma tristeza profunda, sem motivo algum. Estava tudo indo bem, eu estava trabalhando, minhas filhas tinham passado de ano na escola, mas acordei estranha. Com uma angústia... Hoje eu entendo perfeitamente o que aconteceu.

O quê?

Sexto sentido. Não é nenhum pouco clichê o que dizem. Sexto sentido de mãe não falha. E desde que minha filha desapareceu, ele se fez ainda mais presente na minha vida. Naquele dia, eu saí para cortar o cabelo, e voltei para casa logo depois. E minha caçula disse que a Fabiana tinha ido para a casa de uma amiga, que morava a poucos metros de casa e estava fazendo aniversário. Caia um temporal. Esperei a chuva diminuir, e fui até lá. Quando cheguei e perguntei pela Fabiana, me disseram que ela já tinha ido embora. Como? Se não estava em casa e o caminho era um só? Uma rua. Uma reta. Ali, ao mesmo tempo que o meu mundo desabou, foi o começo de uma grande luta.

Você passou a procurá-la de que maneira, dê onde tirou forças nesse momento?

Costumo dizer que o amor de mãe é incondicional. Inexplicável. Ao mesmo tempo em que o sofrimento de ter um filho desaparecido é grande, a esperança de encontrá-lo é muito maior. É isso que nos move. É claro que o começo muito difícil, eu passei 53 dias em estado de choque. De noite, quando eu não saia para procurá-la pelas ruas, passava o tempo todo no sofá, ao lado do telefone, esperando uma notícia. De manhã, eu a procurava em hospitais, abrigos, IMLs... Não dormia e nem comia. Com isso, fui ficando muito debilitada. Doente mesmo, sem forças. Até que um dia, durante um sonho, escutei uma voz dizendo que minha filha estava viva. Lembro como se fosse hoje, adormeci de tão cansada no sofá, agarrada com a blusa que tinha o cheiro dela, e acordei com essa voz. Depois desse dia, nunca mais procurei minha filha no IML.

Nessa época, você conhecia outras pessoas na mesma situação?

Nada. Ninguém falava de desaparecimento de crianças, adolescentes. Era uma luta muito solitária. Passei por várias fases, inclusive a da revolta: Por quê comigo, por quê a minha filha? Só fui saber que tinham outras mães na mesma situação, quando fui chamada para participar da novela "Explode Coração (1995)", que abordou o tema de crianças desaparecidas mostrando uma mãe vivida pela atriz Isadora Ribeiro que procurava pelo filho.

explodecoracaoisadora -  -
Em "Explode Coração", a personagem Odaísa (Isadora Ribeiro) lutava para encontrar o filho desaparecido. A novela de Gloria Perez contou com o depoimento de mães que passavam pela mesma situação na vida real
Fui um momento de grande repercussão nacional. Foi também o que te estimulou a fundar o Mães da Sé?

Confesso que quando fui gravar o meu depoimento na Globo, minha expectativa era de encontrar minha filha no dia seguinte, assim que a novela fosse ao ar. Mas, infelizmente, isso não aconteceu. Foi mais uma frustração. E para não deixar isso tomar conta de mim, lembrei das outras mulheres que participaram comigo das gravações e que faziam parte de um coletivo chamado Mães da Cinelândia, que se dedicava à busca de filhos desaparecidos. Foi aí que tive a ideia de fazer o mesmo aqui, em São Paulo.

Tive a sorte de contar com a repercussão que meu caso ganhou após a novela. Dei diversas entrevistas para jornais de grande circulação e aproveitei para desabafar sobre a negligência do Estado com a causa do desaparecimento e o quanto eu me sentia sozinha nessa luta. Ainda deixei o meu telefone para contato, caso alguma pessoa estivesse passando pela mesma situação e quisesse, de alguma maneira, dividir isso. Depois desse dia, meu telefone nunca mais parou de tocar. Olha aí, está tocando agora. Está ouvindo?

Foi a partir dessa procura que você conseguiu formar a Associação Mães da Sé?

Foi um trabalho de formiguinha. Toda mãe que me ligava, procurando ajuda, eu anotava o telefone e já orientava para que fizesse um cartaz com a foto do filho, com cartolina ou com o que tivesse em casa. Mas era importante a foto do filho. Três meses depois do desaparecimento da Fabiana, marquei de me encontrar com elas na Praça da Sé. Eu cheguei lá antes das 9h, e já havia mais de 100 mães com seus cartazes. No dia 31 de março, ficamos conhecidas como o movimento de mães que procuram por seus filhos desaparecidos, as mães da Sé.

A união de tantas mulheres e esse trabalho de ajudar mães na busca por seus filhos desaparecidos ajudam a lidar com a saudade da Fabiana?

Costumo dizer que toda mãe que, de alguma maneira, tem de lidar com a perda de um filho, não vive. Sobrevive. E o Mães da Sé foi a maneira que encontrei para sobreviver. Eu tenho um respeito imenso por essas mulheres que continuam buscando, incansavelmente, por seus filhos. Nós vivemos com uma dor que não tem remédio. E foi ao lado delas que aprendi a conviver com a dor. Sem essas mães, talvez eu nem estivesse mais aqui. Somos irmanadas pela mesma dor do desaparecimento, mas também pela esperança do reencontro.

E como é a relação dos pais, dos maridos dessas mulheres, na busca por um filho desaparecido?

Essa relação quase não existe. São raros os homens que acompanham a mulher nessa jornada. Uns até chegam a me procurar, para fazer o cadastro, dar início à divulgação para encontrar a criança, mas quando isso acontece é porque a mãe geralmente está em um quadro muito grave de depressão, de desgaste emocional, e não consegue nem sair de casa. Nesses 24 anos de trabalho, menos de cinco pais me procuraram. Muitos alegam que não tem tempo, que precisam trabalhar. Como se a mãe não precisasse...

O pai de suas filhas te ajudou, de alguma maneira?

No começo. Depois, ele precisava trabalhar. Dizia que não podia ficar todo o tempo focado nisso. Hoje, somos separados. Por isso falo do amor incondicional de mãe, nós somos as únicas pessoas que abdicamos de tudo pelos nossos filhos... Eu tive a sorte de ter o apoio da mina filha mais nova, que hoje está com 37 anos. Mas muitas mães que nos procuram, são mães solteiras. De baixa renda. São elas, por elas. E não temos políticas públicas voltadas para isso, para amparar uma mãe nessas condições.

Ivanise Espiridião trabalha há 26 anos na busca por pessoas desaparecidas - Reprodução   - Reprodução
Ivanise Espiridião trabalha há 26 anos na busca por pessoas desaparecidas
Imagem: Reprodução
Você acha que é uma causa invisível para o Estado?

Totalmente. Quando você perde um filho, você tem uma série de outras perdas que acontecem consequentemente, que envolve desde a saúde mental até a sua instabilidade financeira. Muitas mães entram em estado de depressão profunda, e sem acompanhamento médico adequado, não conseguem seguir com a vida que tinham antes. Perdendo, muitas vezes, o emprego. E aí você tem dois problemas, a falta do filho e a falta de comida em casa. Em 24 anos de trabalho, já perdi 16 mães e três pais por conta de problemas de saúde que se agravaram. Então, é uma negligência. Só aparecemos como números.

Em estatísticas, você diz?

Exatamente. Nossos filhos desaparecidos são apenas um número para o Estado. E eles param de procurar a hora que querem. Quantas vezes fui até delegacias, levar informações sobre um possível paradeiro da minha filha para policiais? Milhares. Hoje, minha filha está com 38 anos, mas, para o Estado, ela está morta. Porque passou de 20 anos eles consideram como se a pessoa não existisse mais. Então, se eu quiser uma certidão de óbito, entro com um pedido de morte presumida, e qualquer juiz dá.

E como a Associação Mães da Sé atua, hoje, para ajudar, de alguma maneira, a suprir essa ausência de amparo, de ajuda?

A associação continua ajudando as mães na busca por seus filhos e temos uma roda de conversa, com psicólogos e assistentes sociais a cada 15 dias, na sede da associação, em Pirituba. É claro que ao longo dos anos a forma de fazer nosso trabalho foi se transformando. Com as redes sociais, por exemplo, que se tornaram a nossa principal ferramenta de divulgação de crianças desaparecidas. Antes, quando não havia Facebook, Instagram, contávamos muito com parcerias de iniciativas privadas, empresas que colocavam a fotografia do rosto e os dados das crianças em suas embalagens. Chegamos a ter mais de 20 concessionárias de pedágio que estampavam no verso do tíquete, quando você pagava, dados de crianças desaparecidas. Todas essas parcerias foram o que nos ajudaram a encontrar mais pessoas pelo Brasil.

E mesmo com as redes sociais, campanhas desse tipo, fazem falta?

Sem dúvida. Para você ter uma ideia, em 2014, localizamos uma pessoa que desapareceu ainda adolescente em Santo André, cidade da grande São Paulo, e foi encontrado no Espírito Santo, na cidade de Serra. E isso só foi possível porque uma transportadora adesivou 500 caminhões de sua frota, que percorria o Brasil todo, com o rosto de pessoas desaparecidas. Entende? O que acontece é que, no começo do Mães da Sé, muitas empresas nos procuravam para esse tipo de parceria como uma forma de mostrar alguma responsabilidade social. Só que elas, de alguma maneira, com essas ações, buscam números. Resultados imediatos. E não é assim. A causa do desaparecimento exige um trabalho de perseverança e paciência. O processo é longo e exaustivo. Não é como uma ação qualquer, que você vai ter resultados imediatos para mostrar.

Nesse momento de pandemia muitas mães estão longe dos seus filhos para evitar um número maior de contágio de Covid-19. O que diria nesse momento?

Ser mãe é um privilégio. Se somos capazes de gerar uma vida, somos capazes de tudo. Se você é mãe e tem a oportunidade de passar o Dia das Mães ao lado do seu filho, aproveite esse momento que estamos vivendo para valorizar cada minuto. E pra quem como eu, está distante, longe de quem mais ama, não deixe de ter esperança de que tudo isso vai passar. O amor de mãe não mede esforços e nem distância.