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Lésbica, mãe fala da família: "Tenho filhos trans, hétero e assexual"

Maria Aparecida e três de seus filhos: Thabatta, Ryan e Ramon - Arquivo Pessoal
Maria Aparecida e três de seus filhos: Thabatta, Ryan e Ramon Imagem: Arquivo Pessoal

Abinoan Santiago

Colaboração para Universa

10/05/2020 04h00

No sertão do Rio Grande do Norte, a auxiliar de saúde Maria Aparecida Silva, de 57 anos, quebrou um tabu em Carnaúba dos Dantas, conservadora cidade nordestina com pouco mais de 8 mil habitantes. Após frustrações com dois casamentos heterossexuais, descobriu a felicidade ao se relacionar com uma mulher — namoro que já dura uma década.

Para ser feliz com alguém do mesmo sexo biológico, Maria superou a resistência local, amigos e familiares. Depois de passar por tudo isso, ela agora representa a pluralidade na cidade ao chefiar uma família cheia de diversidade. Maria, que é lésbica, tem uma filha trans, dois heterossexuais e um assexual — este, portador de paralisia cerebral.

"Nossa família é diferente, mas feliz, cada um a seu modo. Meus filhos são minha vida e os defendo até a morte", disse a auxiliar de saúde.

"Para a gente ser feliz é preciso de muito pouco. Não é porque você é homossexual que não pode ser feliz. O conselho que daria às mães é o acolhimento aos filhos, independentemente da orientação sexual. Quando vejo um filho que vai revelar à mãe sobre a sua orientação e é expulso de casa, choro de tristeza. Mãe que é mãe aceita o filho do jeito que é", completou.

A história dos dois casamentos

O primeiro casamento de Maria Aparecida aconteceu muito cedo, ainda na adolescência. Com apenas 14 anos, ela foi morar com o primeiro marido. Teve seus dois primeiros filhos — ambos morreram; o último deles, Alexandre, em 2009.

Maria separou e, aos 20, casou-se pela segunda vez. Manteve o matrimônio por 23 anos e deu à luz outros quatro filhos: Edilne, 33 anos; Ryan, 32; Thabatta, 27; e Ramon, 26. A primeira e o último são heterossexuais. Ryan identifica-se como assexual. Thabatta é trans.

Os três mais novos moram com Maria. A mais velha reside com a avó na Bahia desde os 10 anos. A mãe diz que foi o amor pelos filhos que a manteve casada com o segundo marido por tanto tempo. "Ele era muito raparigueiro. No começo era muito bom, mas, quando passou a trabalhar fora, arrumou mulheres e elas ligavam para mim tirando sarro", lembra.

A libertação do casamento ocorreu quando Maria decidiu estudar para concurso público. Há 12 anos ingressou no quadro efetivo do governo potiguar no cargo de auxiliar de saúde. Com a segurança financeira, ela separou-se do marido. Ele, no entanto, não aceitou o divórcio e ainda permaneceu na casa de ex-mulher por dois anos.

Filho não aceitava homossexualidade da mãe

Maria e Nayre - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Maria Aparecida e a companheira Nayre Jane: relacionamento de dez anos
Imagem: Arquivo Pessoal

Foi nesse período de solteira que Maria Aparecida conheceu a atual companheira, Nayre Jane, de 48 anos. O episódio foi um divisor na vida da auxiliar de saúde, pois forçou a saída do ex-parceiro da casa e acabou com o preconceito que o filho primogênito tinha da relação da mãe com outra mulher.

"Comecei a namorar com ela e meu ex-marido ainda vivia dentro da minha casa", relembra. "Quando ele soube, ficou muito agressivo comigo e quis me bater. Meu filho mais velho, que já faleceu, também tinha preconceito e não gostava. Mas, na noite em que meu ex tentou me agredir, meu filho me mandou dormir na casa da minha companheira", recorda.

Alexandre era o único, até então, que resistia à escolha da irmã e da mãe. Os demais filhos incentivaram desde o início.

"Uma vez ele chegou para mim e falou: 'Mãe, soube que a senhora é lésbica e não quero ter uma mãe lésbica'. A gente conversou numa boa e eu disse que iria viver a minha vida, porque se ele chegasse a mim e dissesse que era qualquer coisa eu aceitaria. Sempre respeitei e queria que respeitassem minhas decisões. Mais tarde, ele passou a gostar muito da minha companheira", conta.

Pai não aceitava transexualidade da filha

Thabatta e Ryan - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Ryan, que tem paralisia cerebral, e a "irmãe" trans Thabatta
Imagem: Arquivo Pessoal

Não foi apenas pela própria orientação sexual que Maria Aparecida lutou para que os outros perdessem o preconceito. Ela também batalhou para ajudar a filha Thabatta superar discriminações, não só nas ruas da pequena cidade em que vivem, mas também dentro da própria casa.

"O pai dela não aceitava no início, mas lutei para que continuasse em casa porque é minha filha", diz. "Sempre foi carinhosa e querida. Minhas amigas falaram bobagens, mas não ligava. Devemos apoiar e não aceito ninguém discriminando. Viro uma fera, pois todo mundo tem direito de viver como quer. Meus melhores amigos são gays."

"Fui ser feliz com uma mulher"

Maria Aparecida conta que foi Nayre quem deu o primeiro passo na relação. "Ela que começou a me assanhar. Investigou a minha vida e sabia que era solteira e trabalhadeira".

Na época, a auxiliar de saúde tinha 47 anos. "Ela fez coisas por mim que nunca recebi, como mandar presentes. Me apaixonei. Nossa primeira noite de amor foi como se fosse de um casal em lua de mel. Eu com um pouco de medo", confessa. "Pensava que era igual nos filmes, mas não era nada daquilo. Foi regado de carinho. Ela disse que me moldaria como um diamante. Foi algo que nunca tive com um homem, que só me usavam e dormiam depois."

Ela afirma, rindo, que não entendi nada sobre o amor lésbico. "O início foi até meio engraçado porque eu tinha medo. Nem sabia como era o relacionamento de mulher com mulher e sobre sexo. Assistia alguns filmes e tinha até medo."

Apesar da reciprocidade de afeto entre as duas, Maria e Nayre moram cada uma em sua casa. A auxiliar de saúde não abre mão de passar o dia com os filhos, sobretudo nesse período de isolamento social, período que está afastada do emprego por ser do grupo de risco.

"Sofri muito por amor, não tive muita sorte. Fui ser feliz com uma mulher. Minhas amigas se afastaram de mim porque a cidade é pequena e todos ainda têm muito preconceito, mas vivo a minha vida e não deixo passar a felicidade. Tenho que dar satisfação apenas aos meus filhos."

Presente de "irmãe": recado da Xuxa no aniversário

Ao perder a figura protetora do filho mais velho, Maria Aparecida viu a família se unir cada vez mais. Thabatta virou uma espécie de segunda mãe na casa, sobretudo para o irmão mais velho, Ryan. Portador de paralisia cerebral, ele tem limitações locomotoras.

"Quem cuidava de Ryan era Alexandre, mas, quando ele morreu, Thabatta tomou para si a responsabilidade de estar ao lado do irmão como se fosse uma segunda mãe", confirma.

A rotina de Thabatta com o irmão é compartilhada em seu Instagram, que tem cerca de 45 mil seguidores. Ela, inclusive, conseguiu realizar um sonho antigo de Ryan, muito fã da apresentadora Xuxa: a artista gravou um vídeo para o aniversário de 32 anos dele.

"Ele sempre teve o sonho de ter uma festa de aniversário de 15 anos. Mas nunca tivemos condições. Então ele pediu a festa de 30 anos. Como Ryan sempre foi muito fã da Xuxa, sabia que além da festa, o vídeo seria o maior presente para ele. Comecei a campanha no Facebook e Instagram até que chegou a uma amiga de uma assessora. Contamos nossa história e pronto. A Xuxa aceitou na mesma hora", contou.

A "irmãe" também o matriculou na escola e o fez descobrir aptidões, como pintar quadros com a boca.

"Sempre fiz questão de mostrar nossa família para dizer às pessoas que todos somos humanos como qualquer outro, independentemente das nossas diferenças sobre orientações sexuais", diz Thabatta. "Assim que as pessoas devem ver uns aos outros e ficamos muito felizes de nos verem assim agora. Foi isso que nossa mãe nos ensinou: que todos são iguais."