Deputada Benedita da Silva: "A escravidão mudou do chicote para a caneta"
Preta e nascida na favela carioca, de pai pedreiro e mãe lavadeira, a deputada federal Benedita da Silva (PT), diz, aos 78 anos, que nunca sentiu medo pela sua raça como nos dias de hoje. E decreta que o 13 de maio, data em que a princesa Isabel assinou a abolição da escravatura, não se celebra: "O extermínio da população negra continua". Evangélica e mãe de dois, Benedita diz que ora todos os dias para que esse quadro não piore já que, na avaliação dela, o Brasil vive "um retrocesso inigualável", com "gestores machistas" e "governantes e executivos que querem que a gente morra".
Benedita foi a primeira mulher negra em muitos locais de destaque: na Câmara dos Vereadores do Rio, onde chegou em 1982 sob o slogan "negra, mulher e favelada"; no Senado, em 1994, e no governo do Rio (2002- 2003), quando substituiu Anthony Garotinho, que se afastou para concorrer à presidência. "Somos ainda poucas mulheres lutando como um lobo contra o canhão", ela diz:
"No dia em que Marielle [Franco, vereadora carioca assassinada em 2018] morreu, ela falava que a primeira vereadora negra, da favela, fui eu e que levou 10 anos para outra entrar, a Jurema Batista. E dizia: 'Agora estou aqui, precisamos mudar essa história'. Fico arrepiada porque é meu sonho ver a mulherada preta ocupando esses espaços. Está faltando oportunidade."
Benedita afirma que não se vê representada pela Ministra Damares Alves, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, porque com "esse governo não tem diálogo". E diz ainda porque não pretende se candidatar à Prefeitura do Rio. "Quero votar no [Marcelo] Freixo e tentar unir a esquerda novamente."
De luto pela morte de um sobrinho, vítima do novo coronavírus, a deputada diz que a atitude do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de ir ao STF (Supremo Tribunal Federal) no último dia 7 pedir para flexibilizar o isolamento é "para matar os pobres", e fala que tem aproveitado o tempo em quarentena para estudo bíblico e aula de inglês online. Veja abaixo os principais trechos.
A data de 13 de Maio, nesta semana, embora lembre a Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil, não é comemorada pelo movimento negro. Qual a forma mais correta de falarmos sobre ela?
Essa data faz parte da história do Brasil, para marcar o sofrimento que houve durante o processo abolicionista. Mas ela marca uma condenação, porque a abolição foi uma condenação. Não tivemos verdadeiramente a liberdade. Foram muitas as vítimas de atrocidades, e o Brasil foi um dos últimos a dar essa chamada "libertação". Ficou, para nós, para os historiadores, militantes, como uma data de denúncia e de reflexão de que o extermínio da população negra continua até hoje. A escravidão apenas mudou do chicote para a caneta. Da caneta para a exclusão. É nesse sentido que o 13 de Maio não se festeja.
Como a senhora enxerga hoje as políticas públicas de combate ao racismo?
Como um retrocesso inigualável. Temos todos os instrumentos colocados pelos governos Lula e Dilma (ambos do PT), como a regulamentação das terras de quilombolas, e as cotas raciais, que levam igualdade e oportunidade. Mas não tivemos grande evolução. Desde a entrada de [Michel] Temer (MDB), houve o esvaziamento dos espaços responsáveis pelos equipamentos de promoção de igualdade social. E hoje é uma loucura. Os gestores são, na sua maioria, machistas, que acompanham a cabeça do presidente da República. Ele coloca um negro na Fundação Cultural Palmares [Sergio Camargo] que disse que a escravidão foi ótima para os negros.
Como entender que a Casa Grande ainda usa negros para bater em negros, como capitão do mato? Chegamos a um 13 de Maio nunca visto antes
Há algum avanço, um ponto positivo, na atuação da ministra Damares Alves em relação à igualdade racial?
Não tem, querida. A gente tem projetos, mas com esse governo não tem diálogo. Temos um Congresso que trabalha com "tudo que seu mestre mandar, faremos todos", no "toma lá, dá cá". Eles falam que não pode ter ideologia, mas eles têm -- e é perversa. E ser religioso não significa muita coisa [a ministra Damares é evangélica, assim como a deputada]. Todo mundo tem fé. Mas não deve haver contradição entre fé e política. Eu professo minha fé, de Gênesis a Apocalipse [livros da Bíblia], mas não posso ser contraditória nos direitos humanos. Não posso ir contra o que tenho como princípio, que é o amor ao próximo. Quem ama não mata, nem discrimina, abandona ou julga. E há muita contradição em religiosos que estou vendo ali.
Se eu faço diferente, sou "a comunista", não tenho tanta fé em Deus, ou ainda meu partido tem que ser eliminado, Lula é a besta do Apocalipse. Acha que isso é de Deus?
Qual seria a política eficiente que de fato acabaria com o racismo?
Primeiro, temos que resgatar as políticas públicas compensatórias, de participação dessa população, e que é por meritocracia, já que nela está prevista teste e tudo o que os outros fazem. Estão acabando com as cotas, criando problema com o Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior), impedindo a ação de médicos cubanos. Todos os países com pandemia estão chamando os médicos cubanos para ajudar, mas o Brasil não pode -- e esse racismo é uma coisa ideológica. Lembrando que essas políticas de ações compensatórias não foram feitas para toda vida. Era para, de dez em dez anos, fazermos uma avaliação dos avanços, e vermos onde precisamos avançar mais ainda. É inconcebível o negro não ter oportunidade de ir para a escola.
Por que o país ainda tem pensamento escravocrata depois de tantos anos de abolição?
Porque tem uma coisa ideológica colocada aí. A política de cotas não é nenhum favor, mas uma medida compensatória. E eles não entram lá sem fazer prova. Enquanto os brancos eram majoritários nesses espaços, estava tudo bem. Quando chegou a oportunidade da negrada entrar e mostrar seu talento, querem mais uma vez menosprezar, depreciar, desqualificar. Foi só dar oportunidade como o Fies e olha quantas pessoas se formaram. Temos médicos e advogados negros e negras. E eles se formaram por competência.
Mas há essa coisa escravocrata na cabeça de governantes e executivos que querem que a gente morra.
Com a pandemia provocada pelo coronavírus, e esse Fla x Flu entre quem aprova ou não o isolamento, as trabalhadoras do lar, na sua maioria negras, são das mais afetadas. Tem a ver com esse pensamento escravocrata?
É uma coisa escravocrata mesmo. A primeira vítima [fatal no Rio de Janeiro] foi uma empregada doméstica, contaminada pelo patrão. Porque a empregada doméstica não viaja. A viagem mais longa que ela faz é pela Baixada Fluminense. E ainda não estão pagando essas trabalhadoras. A diarista não tem um centavo. Sabemos que a coisa está feia. Elas precisam se cuidar. Mas como as pessoas vão se cuidar se o presidente da República foi ao Supremo pedir para flexibilizar o isolamento, por causa da economia? Quem eles querem matar? Os pobres, os camelôs da vida, as meninas do supermercado. Claro que há pessoas que dependem do trabalhador doméstico, por condições de idade e doença, mas tudo tem que ser feito dentro das regras. As pessoas vão ficando desesperadas porque não têm dinheiro e vão para a rua, se contaminando e contaminando outros. Acabei de perder o meu sobrinho por coronavírus. Nossa raça está morrendo.
Deputada, o mundo está em alerta com relação à violência contra a mulher em tempos de coronavírus, já que as vítimas passam mais tempo em casa com o agressor. E os números têm mesmo aumentado. Combater a violência de gênero tem a ver com o combate ao racismo?
Sim, porque a maioria da população é de mulheres negras. E aí você vê essas mulheres negras maltratadas, as trabalhadoras domésticas que mal conseguiram seus direitos e eles estão indo para o ralo com a política de trabalho.
Quando você cuida da mulher negra, está cuidando da maioria da população brasileira.
Como a mulher branca e o homem branco podem ajudar na luta antirracista?
A primeira coisa é ter consciência de que o racismo existe, e o seu papel é entrar na luta com a gente, defender a causa como se fosse sua. Porque é isso que eu faço. Quando luto pelas mulheres, não é só pelas mulheres negras. Quando luto pelo pobre, também sei da vida da classe média metida a besta achando que é rica. É preciso haver equilíbrio. Acho que o homem e a mulher branca merecem escutar nossa experiência e segurar a bandeira.
A senhora já sentiu vergonha ou medo pela sua cor?
Vergonha, não. Era criança e as pessoas não sentavam perto de mim. Na escola, puxavam meu cabelo e me chamavam de "nega do cabelo duro". Eles que deveriam sentir vergonha. Mas estou com um medo que nunca pensei sentir. Medo pela cor da pele dos meus netos, de como minha bisneta será tratada na escola. Posso dizer que enfrentamos a ditadura, mas você não tem dimensão do que estamos enfrentando agora, com pessoas pedindo pelo AI-5, pelo fechamento do Supremo, criando uma milícia de 300 [diz referindo-se ao grupo bolsonarista "Os 300 do Brasil"]. Isso dá medo, mas não me dá o direito de recuar. Aliás, nem tenho mais tempo e idade para recuar de nada.
Não é exagero falar que está pior que a ditadura? Esse discurso não cria medo também?
Não, querida. Está uma loucura. E parece que estamos numa inércia. Essa falta de reação me impressiona, porque fomos levados, por fake news, a acreditar nisso que está aí, e essa ideologia está se consolidando na medida em que estão formando exércitos, de crianças a idosos. Isso é muito sério. Como pode ir pra rua dizer que o objetivo é fechar o Supremo? Estão amedrontando e ameaçando as pessoas baseados em quê? Mas ele [Bolsonaro] sabe o que está fazendo. Ele não é maluco. Cria situações para se manter na mídia, e ainda fala que o caos é culpa do PT. Gente, estamos em 2020. O PT está fora desde 2016.
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