Viúva de PM que era contra isolamento quer alertar sobre gravidade da Covid
Em março, dois meses antes de morrer, o policial militar José Thadeu Gomes, 61, tirou seu primeiro passaporte e começava a planejar as viagens que faria pelo mundo com a mulher, a técnica em enfermagem Dione Araújo Gomes, 50. Aposentados, os dois estavam casados havia 15 anos.
Nem passava por sua cabeça que ele pudesse contrair e se tornar uma das mais de 13 mil vítimas fatais do novo coronavírus. Naquela época, conta Dione, Gomes ainda achava que a doença era "um exagero", seguindo o que dizia o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), do qual ele sempre foi um apoiador.
"No início da pandemia, ele estava achando que era exagero. Via o presidente nas manifestações e dizia: 'Olha só, não é isso tudo, não. O cara [Bolsonaro] tem razão. Você acha que ele ia se expor assim?'", relembra.
Quando vieram as medidas de isolamento social, também foi contra. "Ele criticava, questionava o porquê de isolar todo mundo. Eu tentava explicar que não podia sobrecarregar o sistema de saúde que já estava ruim. Sei do que falo porque sou da área", conta a técnica em enfermagem.
Desde meados de abril, porém, quando passou a acompanhar notícias sobre a morte de colegas de Dione do hospital público em que ela trabalha, passou a acreditar na gravidade da doença. "Foi quando ele começou a ter mais cuidado. Só saía para ir ao mercado, sempre de máscara. Passava álcool até no volante do carro. Mesmo assim, contraiu esse vírus desgraçado. Não sei nem dizer como", afirma.
"Ele se foi uma hora depois de falar comigo por telefone"
Dione conta que o marido começou a sentir falta de ar na sexta-feira, 1º de maio. Mas, por estarem seguindo o isolamento e as medidas de higiene, não imaginou que pudesse ser Covid-19. "Ele tinha problema no coração, sentia um cansaço às vezes. Achei que fosse isso."
No sábado de manhã, o marido contou que quase não tinha dormido por ter passado a noite toda com falta de ar. Começou a tossir sangue e estava com o peito chiando muito. "Os sintomas foram se agravando muito rápido", diz. "Fomos para o hospital e, na tomografia, mostrou que ele estava com de 25% a 50% do pulmão comprometido. Diagnosticaram como sendo coronavírus."
Gomes passou o tempo todo na emergência do hospital porque não havia leitos livres na UTI. "Falei com uma médica que me disse que ele estava tomando azitromicina e cloroquina [ambos remédios usados em tratamentos mas sem eficácia comprovada contra o vírus]. Não podia vê-lo e levei um travesseiro para ele, mas nem isso queriam aceitar. Insisti e ela pegou o travesseiro. E disse para eu ir para casa descansar."
Na segunda-feira (4), ele ligou para a mulher às 16h. "Disse que ainda estava na emergência. Falou que não tinham dado nem café. Me contou também que estava muito cansado, que só melhorava um pouco quando ficava sentado. Eu respondi dizendo que ia orar por ele, que ele ia ficar bem", relata.
Passei a noite orando, mas ele já tinha morrido. Só no outro dia de manhã que me contaram
Ela conta que no atestado de óbito constava que Gomes havia morrido às 17h40 de pneumonia viral, insuficiência respiratória aguda e Covid-19 . "Não sei se chegou a ser intubado."
No enterro, camiseta do grupo de oração cobre caixão
Das várias lembranças que ficaram do marido, Dione diz que a fé dele, que ela sempre admirou, é o que a tem consolado depois de perdê-lo. "A fé do meu marido me deixava encantada. Ele era um homem muito fiel a Deus. É isso que me mantém firme agora."
Por ser um enterro de vítima de Covid-19, Dione não pode ter a despedida que gostaria. "Mas consegui colocar em cima do caixão a camisa com o símbolo do grupo de oração que ele participava. Ele usava muito essa camisa. Fiz isso para que simbolizasse que vesti meu marido como ele gostaria."
"Meu alerta não é político, só quero que levem a doença a sério"
Dione gravou vídeos em redes sociais e chegou a criar um abaixo-assinado online para que Bolsonaro seja responsabilizado por crime de apologia à Covid-19. Conta que ficou revoltada em ver o marido, que tanto apoiou e acreditou no presidente, morrer da maneira que morreu.
"E esse homem [Bolsonaro], sem mostrar o mínimo sentimento. Ok, ele não é Deus, como falou, mas pelo menos finge, chora, lamenta as perdas. Diz alguma coisa sobre todas essas mortes, que incluem gente que o defendeu. Nem isso ele está fazendo."
Ela afirma que agora quer alertar as pessoas, mas não pelo viés político. "Se quiser ficar do lado do Bolsonaro, fique, é seu direito. Mas meu alerta é em relação à saúde pública", diz Dione. "Quero que as pessoas acordem. A doença não é brincadeira, não é fake news. Esses caixões não estão cheios de pedra, nem de terra. As mortes são reais e devem ser muito mais do que os números que estamos mostrando. No dia que enterrei meu marido, por exemplo, não tinha mais flores para vender, de tanto enterro que já tinha acontecido."
Para Dione, a responsabilidade do presidente é por ele ser uma figura pública e influenciar seus seguidores. "A partir do momento que ele sai sem máscara, diz que é 'gripezinha', fala com frieza que muita gente vai ser contaminada e vai morrer, é nisso que quem segue ele vai acreditar", diz.
"Mas não é assim", complementa. "A situação é muito séria, o SUS não tem respiradores, não tem leito suficiente, como aconteceu com meu marido. E eu, agora, tenho que falar por ele, que se foi. Ele também colocaria a boca no trombone por mim."
Ainda que não possa mais realizar os planos de viajar o mundo, Dione guarda consigo o amor do que passou ao lado de Gomes. "Ele era um homem muito bom para mim. Às vezes, eu tinha insônia, e ele ficava comigo jogando dama e buraco durante a noite. Perdi meu grande amigo."
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