Por que feministas negras e brancas nem sempre pensam da mesma maneira?
Muitas mulheres, muitos feminismos. Para quem vê de fora — e mesmo para quem se identifica com as pautas — a luta pela igualdade de gênero parece ser uma colcha de retalhos de exigências de direitos, reivindicações de políticas públicas e pluralidades de comportamentos sociais. E é mesmo. Admitir essa complexidade faz parte do jogo: não há apenas um feminismo. Afinal, as mulheres têm experiências diferentes de vida e são atravessadas por diversas opressões, como relacionadas à raça, à orientação sexual e à identidade de gênero, à forma física, em maior ou menor grau.
Só que nem sempre quando uma mulher ergue sua voz contempla a pauta da vida de todas as mulheres. E, justamente por isso, o feminismo carrega embates entre os grupos de mulheres no Brasil e no mundo. A gerente de Gênero e Incidência Política da Plan International Brasil, ONG que defende os direitos das crianças e jovens com foco na igualdade de gênero, Viviana Santiago, que se identifica como uma feminista negra interseccional, explica que há pluralidade de pautas porque passa por aspectos de identidade e de luta política que a mulher escolhe para si.
"Gosto de dizer para que as pessoas vejam as mulheres como diversas. Todas têm uma demanda em comum: serem mulheres em uma sociedade patriarcal que coloca o homem como centro e vivenciarem as violências decorrentes disso; mas, as mulheres trans, por exemplo, enfrentam um desafio maior, porque por vezes sequer são reconhecidas como mulheres, inclusive por mulheres também".
Diferentes aspectos, diferentes lutas
A feminista branca Joanna Burigo, mestre em Gênero, Mídia e Cultura e criadora da Casa da Mãe Joanna, projeto de comunicação e educação sobre gênero, considera que até mesmo o conhecimento geral de como o feminismo foi crescendo dentro das sociedades - desde o século 19, na Inglaterra, com o sufrágio - vem de uma perspectiva feminista branca.
"A autora Clare Hemmings fala em seu livro 'Contanto estórias feministas' que tudo parte de uma visão do Hemisfério Norte, cisgênera, de quem estava em posições de poder e privilégio. E da hegemonia branca, que até hoje está nas narrativas ficcionais e da realidade", avalia. "Até mesmo as ondas feministas — que, na verdade, representam os momentos em que sociedade se interessou nas pautas do feminismo — são marcadas, pelo menos as duas primeiras, a partir das demandas das mulheres brancas".
Ampliar os horizontes e defender uma luta interseccional, ou seja, que põe na mesa diferentes aspectos da vida da mulher, pode ser um exercício fundamental entre as feministas, como explica Viviana.
O feminismo interseccional é importante para se pensar políticas públicas. Se a gente visualizar a perspectiva de uma mulher trans, negra e periférica, socialmente, ela sofre por três coisas: por estar inserida em um grupo cisnormativo, racista e capitalista.
Para a produtora de conteúdo Triscila Oliveira, que é feminista negra interseccional, se a luta feminista ganhou mais visibilidade na mídia e nas mídias sociais, sofreu, ao mesmo tempo, com a diluição de alguns conceitos, como de união feminina e sororidade.
Ela critica, por exemplo, o fato de feministas brancas estarem a par disso e apenas reproduzirem a expressão "eu reconheço meus privilégios" sem agir para mexer nas estruturas sociais. "Digo a elas que por ser uma pessoa branca, você está se beneficiando de uma opressão; não é culpa sua, é um sistema dentro de uma sociedade. É necessário, então, rever o discurso", diz a criadora de conteúdo. "Seguindo a mesma linha de raciocínio: não é apenas não ser racista, mas agir de forma antirracista", comenta Triscila.
"Algumas famosas e pessoas com projeção, especialmente na internet, levantam a bandeira e fazem um feminismo de telão, ou mainstream, com o esvaziamento e a banalização da luta. Quem se beneficia disso é apenas a pessoa que vende essa ideia".
Feminismo negro: raça é centralidade da vivência
Também designado como "feminismos negros", ele ganha corpo a partir do momento em que as mulheres negras não se sentem representadas em outros movimentos. No Brasil, sendo negra mais da metade da população total, o movimento tem ainda mais importância.
A luta antirracista pauta as demandas de quem vive uma dupla opressão (por ser mulher e por ser negra). Para feministas negras, outras questões também entram em debate: o preconceito contra crenças afro-brasileiras, o genocídio da população negra (principalmente de homens jovens), a justiça reprodutiva (não só escolher se, quando e quantos filhos terá, mas as condições de maternagem), a luta por moradias.
Triscila Oliveira afirma que as estruturas sociais do Brasil fazem com que a raça seja um marcador social potente - por isso, mulheres negras dialogam bastante com os direitos dos homens negros. "A raça é a centralidade da nossa vivência; não vem primeiro, mas é um marcador [social] mais potente. Se você vê uma pessoa negra na rua, verá que é negra primeiro; o gênero, você precisará perguntar, até porque é uma construção de identidade", analisa.
"Fato é que as mulheres negras são o topo da pirâmide quando se fala de violência, mas são a base quando se fala em oportunidades, salários, educação".
Feminismo branco: lugar de autocrítica
"Ser branco é ser parte de um grupo de poder hegemônico", pontua Joanna. "Por isso, não acho que a gente possa compor algo do feminismo branco fora de um lugar de crítica. Isso porque ele apaga, repetidamente, as pautas negras e indígenas; são cegueiras oriundas do privilégio de ser branca, como eu sou. Eu vivencio uma série de experiências machistas, mas eu nunca serei tratada com racismo, por exemplo".
Para Viviana, as feministas brancas, por vezes, podem repetir o padrão de discutir pouco a realidade de outras mulheres que não façam parte de seu grupo racial.
"Há diferenças de debate: enquanto mulheres brancas falam do assédio no transporte público, feministas interseccionais também acrescentam a falta de ônibus em determinados lugares das cidades, entende?". Abrir-se para a vivência de outras mulheres, diz Viviana, faz com que a mulher branca seja aliada das outras mulheres, assumindo um "papel ativo em enfrentamentos que possam acontecer".
Para ser uma "ativista" ou "defensora" do feminismo, não existem jeito certo ou errado. As pautas são de igualdade de gêneros - e cada mulher poderá partir de um ponto de sua vida para entender (e defender) a autonomia feminina na sociedade. Cabe, no entanto, reconhecer que ninguém é fada sensata e dominadora (ou dominador) do conhecimento sobre os sistemas de opressão sociais. Nessa hora, vale mais dialogar com quem vive realidades diferentes do que correr o risco de usar discursos excludentes.
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