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Joanna Maranhão: "Abuso é sempre uma ferida aberta"

Joanna Maranhão durante competição - Acervo pessoal
Joanna Maranhão durante competição Imagem: Acervo pessoal

Ana Bardella

De Universa

18/05/2020 04h00

"Criei a ONG, mas os casos não chegavam": no Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infantil, a nadadora e ativista Joanna Maranhão, de 33 anos, alerta para a complexidade do tema. Mesmo quem trabalha arduamente para reduzir os números impressionantes do crime no Brasil, pode ser obrigado a repensar as próprias estratégias.

A atleta, que participou de quatro Jogos Olímpicos e é considerada uma das maiores recordistas brasileiras de natação, teve sua história no esporte marcada por um caso de abuso sexual quando ainda era criança, aos nove anos. O crime foi cometido pelo seu então treinador.

A denúncia, feita em 2008, resultou na aprovação de uma lei de alteração do Código Penal Brasileiro. Batizada pelos parlamentares de Lei Joanna Maranhão, ela estabelece que o prazo de prescrição de abuso sexual de crianças e adolescentes seja contado a partir da data em que a vítima completa dezoito anos. Com isso, desde 2012 as vítimas do país ganham mais tempo para denunciar e punir seus abusadores.

De lá para cá, sua vida mudou: a recifense se aposentou da natação em 2018, aos 31 anos. No ano seguinte engravidou do marido, o judoca Luciano Correa — e hoje é mãe de Caetano, que nasceu em agosto de 2019. Atualmente, ela também trabalha como gerente na equipe da Secretaria Executiva de Esportes da Prefeitura do Recife.

Após a aposentadoria da natação, criou a ONG Infância Livre, cujo objetivo inicial era combater a pedofilia através de suporte às vítimas de baixa renda, mas que precisou ser reformulada. Ao perceber que a instituição estava recebendo poucos casos para serem atendidos, Joanna se deu conta de que apesar de as ocorrências serem altas, o crime ainda é pouco denunciado pelas famílias. Logo, entendeu a necessidade de focar os esforços da ONG também na prevenção.

A seguir, ela comenta sobre como adaptou a rotina durante a quarentena e opina sobre o combate ao crime do qual foi vítima.

Caetano está com menos de um ano. Como tem sido para você a maternidade em meio à pandemia?

Joanna Maranhão e o filho Caetano - Reprodução / Instagram - Reprodução / Instagram
Joanna Maranhão e o filho Caetano
Imagem: Reprodução / Instagram
Existe o lado pesado pelo qual todos nós estamos passando, de perder a possibilidade de sociabilizar e estar nas ruas, nos lugares. É óbvio que a pandemia não é igual para todo mundo e a desigualdade do nosso país fica escancarada em um momento como esse. O que tenho tentado fazer é otimizar e aproveitar o tempo que estou tendo a mais com meu filho. Isso gera um estresse grande, porque ele demanda de mim o tempo todo. Muito mais do que do pai ou de qualquer outra pessoa - e eu ainda trabalho.

Está sendo um desafio grande tentar conciliar tudo no mesmo dia, mas ao mesmo tempo considero um presente poder ficar em casa. Olho, percebo tudo o que ele está adquirindo. Não estou perdendo nada. Se fosse em outros momentos, chegaria em casa depois de oito horas de trabalho e teria a notícia de que ele deu os primeiros passinhos. Agora, consigo presenciar isso.

Como ex-atleta, como está lidando com as limitações neste momento?

Para mim, o exercício físico além de funcionar como uma terapia, foi também profissão por muito tempo. Não é nem indicado que eu interrompa minha rotina de maneira brusca. E é algo de que gosto muito, importante inclusive para lidar com a depressão que tenho. No começo tentei fazer todos os dias. Com a rotina de trabalho, ficou difícil. Então reduzi para três ou quatro vezes na semana. Aluguei alguns implementos, como halteres, medicine ball, elástico... E tenho uma profissional que manda os treinos para mim desde que o Caetano tinha um mês. Ela é especialista em pós-parto. Antes, nadava três dias e malhava três. Agora, estou só com os exercícios em casa.

A Covid-19 afetou profundamente o esporte. Como você avalia a forma como o Brasil vem lidando com o setor nesse período? Sente falta de alguma medida?

Joanna Maranhão durante competição - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Joanna Maranhão durante competição
Imagem: Acervo pessoal
Uma pandemia atinge absolutamente tudo. Mas se tivéssemos uma representatividade forte, seja em forma de Ministério ou se a Secretaria Especial do Esporte tivesse mais força, a situação poderia ser remediada, poderíamos pensar em novas formas de fazer esporte. Mas se trata de uma secretaria fantasma. Quem usou esse termo foi um deputado gorvernista [Joanna se refere ao deputado federal Luiz Lima (PSL), também ex-nadador olímipico, que se referiu à secretaria como "uma casa fantasma"].

Os atletas de alto rendimento do Brasil são uma classe muito desunida. Não se mexem para nada. Junta uma coisa com a outra: um grupo que não se articula e uma secretaria que está sempre em terceiro, quarto nível de prioridade dentro de qualquer governo. Com isso, os atletas sempre se escoraram nos clubes, que são quem de fato os sustentam. Mas eles foram afetados. Vimos redução de salário, de bolsa, de tudo. Fica difícil pensar no cenário brasileiro pós-pandemia. Eu vejo o Comitê Olímpico pensando muito nos potenciais medalhistas para Tóquio e dando algum tipo de estrutura para esses atletas. Mas na base das modalidades é difícil de enxergar.

A COB criou um curso EAD sobre assédio sexual e estipulou sua obrigatoriedade para todos os profissionais que irão participar dos Jogos Olímpicos. O material contém um depoimento seu. Como foi esse convite?

O convite veio em 2014, para um outro curso. Mas foi muito bem recebido. A partir daí a COB foi tomando consciência da importância que é abordar esse tema. Considero o curso superimportante. A gente não muda uma mentalidade tão obscura e que se alimenta de silêncio se não falarmos sobre.

É preciso colocarmos que o treinador tem uma posição de hierarquia e que violências sexuais podem se dar por esse motivo. Seja uma hierarquia de gênero, do homem para com a mulher, seja por uma questão racial ou social. É sempre essa coisa do maior sobre o menor. Se a gente não pensar sobre esses conceitos e sobre as linhas tênues que eles envolvem, o processo fica mais difícil. O atleta pode estar apenas buscando otimizar sua performance e passar por um desrespeito. É preciso capacitar confederações e clubes para que tenham ouvidorias e estimulem as pessoas a denunciarem, acolhendo as vítimas. São muitas as frentes nas quais podemos trabalhar e ter o maior órgão esportivo do Brasil preocupado com isso é grandioso.

Você já contou muitas vezes sua história. Acredita que isso te ajudou a lidar melhor com ela?

Contar muitas vezes pode ser perigoso, porque você entra em um processo de revitimização. A cada vez que conta, vive aquilo novamente. Eu me lembro de isso ser muito latente quando comecei a falar sobre ela na terapia, em 2006. Só em 2013, depois que passei por um trabalho de hipnoterapia é que consegui tirar um pouco da emoção da história, junto com tudo o que estava vivendo e da ressignificação da minha luta nessa pauta. Hoje consigo falar sobre ela de uma forma não tão forte, sem sentir tanto na minha pele quanto das primeiras vezes em que verbalizei. Mas não quer dizer que é fácil falar e evito descrever. Falo que fui vítima, conto por alto como aconteceu. Mas sempre que preciso fazer isso detalhadamente, como se fosse um depoimento, isso mexe comigo.

A lei que leva seu nome concede às vítimas mais tempo para denunciarem, mas ainda assim, o crime de abuso sexual infantil continua prescrevendo. Você é a favor da não prescrição?

Sou a favor de que esse crime não prescreva nunca. Mas não dá para achar que essa é a solução. Porque aí chega uma pessoa com 50 anos, contando sobre um abuso que sofreu aos 10 e automaticamente vai entrar no ciclo da descrença. 'Por que está falando só agora?'. É preciso pensar quem são as pessoas que vão ouvir essas histórias, que tipo de acolhimento será dado a elas e como vai se dar esse tipo de investigação. Se a gente não pensa no momento posterior à denúncia, então é só mais uma lei.

O que de mais importante considera que aprendeu com a sua ONG?

No início, quando criamos o projeto, queríamos muito ser um grupo de apoio psicológico e jurídico para crianças de baixa renda que fizessem a denúncia. Fazemos o encaminhamento para escolinhas de esporte, porque sabemos o quanto é importante que elas continuem com suas atividades ou adquiram outras na rotina, depois de passarem por um trauma como esse.

Mas é como se esses casos não chegassem. Chegou um muito emblemático, no qual conseguimos lutar na Justiça para que a guarda saísse da mãe e fosse para o pai, uma vez que os abusos aconteciam quando a criança de 5 anos estava perto de pessoas que frequentavam a casa da mãe. Mas depois disso, novos casos não vinham. A maior lição que tivemos é de que as pessoas não denunciam. Elas têm medo de procurar ajuda, falar.

Então pensamos em ir para outro lado, trabalhar também na prevenção, que se dá pela via da educação sexual. E encontramos uma fórmula muito eficaz de conversar com diferentes tipos de pessoas. A mensagem é a mesma, mas os públicos são diferentes. Com crianças, a abordagem é uma. Com adolescentes, outra. Grupos de pais ou de professores também têm suas especificidades. Nosso trabalho hoje basicamente é esse.

Na sua opinião, quando a educação sexual deve ter início?

Joanna Maranhão e o filho Caetano - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Joanna Maranhão e o filho Caetano
Imagem: Reprodução/Instagram
Desde o momento do nascimento -- e alguns autores defendem até que o processo pode começar antes disso, quando o bebê ainda está na barriga, através da escuta da mãe. A educação sexual é o contrário de o incentivo a uma sexualidade precoce. Eu penso muito nisso como mãe de um menino. Estipulei para a minha família e a família do meu marido que o órgão genital do nosso filho é para higiene, avaliação médica e só. Ninguém brinca, ninguém toca, ninguém faz nada. Quando ele estiver entrando na adolescência é que vamos começar a falar sobre sexualidade, uso de preservativo, enfim. Essa é a melhor maneira e já foi provada cientificamente.

Como vítima que tomou a decisão de falar na vida adulta, o que mais te incomodou nesse processo? Muitas pessoas desacreditaram do que você tinha a dizer?

Algumas coisas. Uma delas é você se perceber tão vulnerável tantos anos depois. Eu me autojulguei muitas vezes, reforçando o como eu era e estava sendo fraca, lidando com aquilo na maturidade, mas completamente à mercê, sem conseguir tomar as rédeas e mudar a minha história. Ficava prostrada na cama, a base de remédios, me arranhava. Me julgava muito quando estava nesse lugar de tristeza e melancolia.

Mas a descrença é algo que difere. É uma ferida aberta, purulenta, sangrenta. Você está lá fazendo de tudo para criar uma casquinha, colocar um curativo. Aí vai lá uma pessoa e mete um garfo naquele lugar, bem no pus. A sensação é exatamente essa quando alguém diz que você está mentindo ou questiona os motivos pelos quais você só falou agora.

As pessoas que estão ao seu entorno não têm coragem de falar isso, então você fica sabendo sempre por terceiros. 'Ah, porque o fulano falou em uma conversa...'. Machuca demais, é muito difícil. Não foi o meu caso, mas tenho relatos constantes de vítimas que sofrem isso da própria família, da própria mãe. É complicado.

Por que acredita que o Brasil tem índices tão altos de abuso sexual infantil? Acha que os números estão relacionados à nossa cultura?

É uma suposição minha, mas acredito que possa ter a ver com a nossa cultura latina, na qual o toque é muito natural. Somos da sensação, do abraço, do toque, do beijo, do carinho. Fica mais fácil para o predador. E quando eu digo predador não estou me referindo ao homem do saco lá da esquina. Estou dizendo do pai, padrasto, treinador, tio e às vezes até uma mulher. É em menor escala, mas também existem mulheres abusadoras. Estou falando das pessoas acima de qualquer suspeita. A partir do momento em que o toque é naturalizado na sociedade, fica mais difícil perceber.

Mas também não podemos deixar de levar em conta o xis da questão, que é a relação hierárquica, do homem sobre a mulher, do adulto sobre a criança, do líder religioso sobre o jovem da catequese ou do menino que está no culto ou no terreiro. Na sociedade isso acontece o tempo inteiro.