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Ela viveu sob nazismo e na Alemanha Oriental; aos 85, ensina inglês na web

Elisabeth Wagner dá aula de inglês pelo Youtube; ela nasceu no Brasil, mas viveu na Europa no período da 2ª Guerra Mundial, e conta sua história - Arquivo Pessoal
Elisabeth Wagner dá aula de inglês pelo Youtube; ela nasceu no Brasil, mas viveu na Europa no período da 2ª Guerra Mundial, e conta sua história Imagem: Arquivo Pessoal

Nathália Geraldo

De Universa

26/05/2020 04h00

Resumo da notícia

  • Elisabeth Wagner ensina inglês de forma fácil com vídeos no Youtube desde 2011
  • Ensinar inglês, no entanto, é apenas uma parte de sua trajetória
  • Na infância, viveu na Europa durante a Segunda Guerra Mundial; só retornou ao Brasil nos anos 50
  • Em 1975, após divórcio, criou uma escola de natação e inglês no Morumbi, bairro de São Paulo
  • Hoje, dá aulas do idioma ao lado de uma das filhas, Juliana. E faz até lives no Youtube, sempre didáticas

Nascida em Prainha, próximo de Peruíbe, no litoral paulista, Elisabeth Wagner, hoje com 85 anos e professora de inglês pelo Youtube, cruzou fronteiras geográficas desde que tinha 4 anos.

A primeira vez foi por conta do avô paterno, que estava na cidade com o nome alemão Brüx (hoje, Most), na Checoslováquia. Ainda criança, então, ela acompanhou o pai, austríaco, e a mãe, alemã, até o país para que os adultos cuidassem da fazenda da família. Foi quando a Segunda Guerra Mundial estourou e eles tentaram voltar ao Brasil, em um navio alemão. Não deu: Getúlio Vargas havia declarado guerra à Alemanha. Eles foram obrigados a dar meia-volta para a Europa.

Até os 10 anos, Elisabeth viveu sob regime do nazismo e da Alemanha Oriental, com os pais e os irmãos. Passou por um colégio interno em uma cidade que se chamava Breslau, na Selésia (atualmente, Wroclaw ou Breslávia, na Polônia), enquanto seus pais integravam o Exército nazista. "Minha mãe era nazista, oradora. Meu pai era antipolítico".

Desta época, conta para Universa sobre o barulho das bombas — "Por algum tempo, não gostava de ver filmes de guerra" — e sobre a vida cotidiana no comunismo — "Não há liberdade nenhuma, você não trabalha para sua família, trabalha para o Estado". Critica os dois regimes. "Não aconselho nazismo ou comunismo para ninguém", diz, revisitando sua experiência particular.

"Do nazismo, me lembro da guerra e o que sei é que tinha uma tremenda lavagem cerebral na escola; se ele divulgava o "Pelo bem da Alemanha", os comunistas diziam "Tudo pelo bem do povo".

"Eu perguntei o que era paz"

Crescer nestes tempos de crise, segundo Elisabeth, teve efeitos em sua vida e, ainda hoje, despertam memórias de uma época em que ela não sabia sequer o que era paz — e por ser uma criança, chegou a não querer que as coisas mudassem.

"Por muito tempo, não gostei de filme de guerra e se tinha fogos em São João ou em jogo de futebol, minha vontade era jogar-me no chão e procurar abrigo. Levei um tempo para me costumar. Digo que não tenho trauma, porque se não tiver ninguém traumatizando, a gente supera. Mas durante a Segunda Guerra, eu não conhecia outra vida. Eram as bombas caindo, eu, meus pais e meus irmãos [um três anos mais velho, outro três anos mais novo] em abrigos, a terra tremendo.

Um dia, minha mãe disse: rezem pela paz. Eu perguntei o que era paz, e ela me disse que era não ter mais guerra. Os homens voltariam para casa, não usariam mais uniforme. Eu não poderia imaginar como era.

Minha mãe me disse que eles voltariam para dirigir caminhões, trabalhar nos trens — o que as mulheres faziam enquanto eles estavam nas batalhas. E que quando viesse a paz, as mulheres cozinhariam, lavariam a casa, cuidariam das crianças. E eu pensava que, quando fosse grande, queria dirigir um trator. Então, na minha cabeça, não queria aquela paz.

Meu irmão mais novo, me perguntou: "Você vai rezar para esse negócio de paz?". Eu disse que não.

Ele me disse: "Então, vamos só rezar para cair uma bomba na escola". Ou seja, dentro do ambiente que a criança crescia, era aquilo."

No pós-guerra — quando Elisabeth era adolescente — conseguiu sair da Alemanha Oriental para viver com uma tia na Inglaterra. "Depois de dois anos lá, a ONU questionou quem não era alemão, que poderia sair do lado comunista dos russos. Como meu pai era prisioneiro de guerra e minha mãe, presa política, fui para Inglaterra".

A volta ao Brasil só aconteceu no início dos anos 50. E foi por ter vivido em tantos países que a bagagem de idiomas que carregava se tornou um de seus maiores motores na vida.

"Eu já sabia português, tcheco, alemão, russo e inglês. A família voltou para São Paulo, trabalhamos em sítio, eu como empregada doméstica e babá. Descobriram que eu falava inglês e, com menos de 18 anos, comecei a dar aula em uma escola da cidade".

Boa em idiomas, mas difícil de entrar na faculdade

Elisabeth Wagner - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Elisabeth volta ao Brasil e depois de trabalhar como empregada doméstica e babá, passa a dar aula de inglês
Imagem: Arquivo pessoal

Na Capital paulista, Elisabeth decolava na profissão, estudava de noite no Madureza [curso de educação de jovens e adultos, com aulas dos antigos ginásio e colegial] — mas, não conseguia passar no vestibular para o curso de Filosofia Anglo-germânica (Letras). O motivo: apesar de saber muitos idiomas, não era boa em Geografia e História do Brasil e não sabia os nomes técnicos em português das substâncias que estudava em Química e Física.

Resolveu entrar em um curso mais concorrido, o "Filosofia pura" e, dentro da faculdade, migrar para as outras aulas. Ela não revela em que universidade se formou, porque se tornou uma persona non grata ao comentar com o diretor da instituição sobre como, nas aulas, os professores não ensinavam aos alunos alguns detalhes da língua inglesa — "Tinha que chamar atenção para as sílabas longas, não falar 'bitch', mas beeeeach", relembra para Universa.

Fama de aeromoça e preconceito por ser secretária enviada a hotéis

Elisabeth Wagner aeromoça - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Secretária em um escritório de mineração, aeromoça: Elisabeth teve carreiras em que saber mais de um idioma era um diferencial
Imagem: Arquivo pessoal

Atuando como secretária de uma empresa de metalurgia e mineração e como aeromoça, Elisabeth viveu o preconceito por ser mulher.

"De vez em quando vinha alguém de firma estrangeira, um chefão americano, suíço. Ligavam para perguntar se a secretária podia ir no hotel para fazer correspondências, para ele dar o ditado. Me falavam: se você for, vão falar que você é puta. E eu dizia: E o que que tem? Eu não tô nem aí. Ele paga por hora. Tinha esse preconceito, principalmente quando eu ia a congressos e tomava nota nesses hotéis". Como aeromoça, a "má fama" também foi alvo de críticas da família. "Não era bem vista".

Casamento em Las Vegas, casa no Morumbi e a reconstrução

Nos anos 60, o hábito de rasgar os céus e os mares para trabalhar deu lugar a uma nova realidade para Elisabeth: aos 25 anos, se casou e montou uma empresa de filtros com o marido, em São Paulo. Ficou em casa para cuidar dos três filhos, nascidos entre 62 e 72. A vida financeira também foi diferente do que vivera até aquele momento.

"Conheci meu marido em um desses congressos. Éramos solteiros e na época eu tinha um terreno, uma boa poupança e um carrinho. Ele me prometeu pagar 4% de juros se eu investisse na firma de filtros que ele queria abrir. Então vendi o que eu tinha e investi. Um dia, soube que ele tinha sumido, ido para os Estados Unidos. Achei que ele estava fugindo para não me pagar, comprei passagem e fui atrás. Ao chegar lá, decidimos nos casar em Las Vegas", conta. "Acho engraçado hoje, porque quando voltamos ao Brasil, ele pediu minha mão para meu pai, mas já estávamos casados".

Com o acordo financeiro, aos poucos, Elisabeth virou sócia majoritária, com 61% das ações da empresa. Nesta época, seus pais estavam aposentados morando em Campos do Jordão (SP) e ela cuidava das crianças. A firma de filtros, no entanto, desandou e abriu falência, assim como o casamento. "Descobri coisas, casos com mulheres", explica.

Elisabeth Morumbi - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Escola de natação e de inglês Morumbi Anglo-cultura funcionou de 1975 a 2000, na Capital
Imagem: Arquivo pessoal

Com uma casa própria no Morumbi, bairro considerado nobre na Capital, Elisabeth projetou uma mudança de vida em que, mais uma vez, as aulas de inglês faziam parte: se mudou para uma casa menor e fundou na moradia da família, em 1975, uma escolinha de natação e de inglês — a "Morumby Natação anglocultura". "As crianças nadavam na nossa piscina menor, tomavam um lanchinho e depois estudavam inglês".

A instituição durou até 2000 e "chegou a ter 16 funcionários e mais de 600 alunos; com o tempo, também atendia a adultos". Fechou, diz Elisabeth, porque "depois de viver no comunismo, você aprende a fazer tudo certinho, a não sair da linha. No meu negócio, eu pagava tudo, imposto, seguia tudo direito. E quem faz isso não sobrevive [no mercado]".

Jeito de ensinar...

Não só a pronúncia das palavras em inglês e a forma com que ensinavam o idioma aqui incomodavam Elisabeth. "Percebi que meus filhos, mesmo tendo frequentado escola americana. Dei aula particular para eles. Quando fui falar no colégio deles e me disseram: o inglês da escola, eles não sabem. Então, há duas formas de se ensinar: o que se fala por aí, nas ruas, e o idioma das escolas".

É por essa razão que, depois de ter fechado a escola e se mudado para Florianópolis, onde hoje vive com a filha, Juliana, Elisabeth se dedica a ensinar a língua principalmente valorizando a naturalidade da fala. "Peço para que os alunos não leiam e escrevam, porque isso estraga a pronúncia. A maior prova de que isso dá certo é de que tenho alunos deficientes visuais, a quem dou aulas de iniciação gratuitas, que deslancham bem."

Ouvir com atenção a músicas em inglês, repetidas vezes, diz Elisabeth, também pode ser uma boa técnica para aprender o idioma. "É fazer aulinha, ouvir música, fechando os olhos e prestando atenção — vai cansar, mas é um jeito de treinar". Além das aulas particulares que oferece por WhatsApp, ela mantém um canal no Youtube com, até agora, pouco mais de 100 mil inscritos. Ela tem feito lives, aos sábados, ao lado da filha, que depois ficam salvas na plataforma.

...Jeito de pensar

Ela conta que acompanha as conversas que invocam regimes comunistas e nazistas que acontecem atualmente no Brasil. Sob sua perspectiva, ao longo da História, "o brasileiro tem muita liberdade e não sabe disso". Mesmo quando o país passou por um regime ditatorial, opina, ao ser questionada pela Reportagem. "Não estranhei. Só percebi que tinha muita segurança...E hoje, vejo que a construção de hidrelétricas, viadutos, é datada da ditadura. Se tinha gente que foi perseguida, sempre existiu, desde a Inquisição".

Sua experiência é de limitações sob regimes de governo diferentes, ainda que do nazismo tenha apreendido mais a situação de guerra do que os impactos sociais na vida das pessoas, por ter presenciado na infância. "No regime nazista, quando preenchiam documentos, nossa família colocava na lacuna religião as palavras 'crente em Deus', porque não podia ser católico, protestante, nada. Era só isso, para não falar que Hitler tinha proibido Deus também", detalha.

"No comunismo, você só tinha direito de comprar um par de sapato de dois em dois anos. Acaba a vida particular e individual, totalmente. A comida era igual para todos: só tinha carne moída, porque um não podia comer filé mignon e o outro músculo. Eu penso que, se fosse tão bom, não teriam construído um muro [de Berlim, derrubado em 1989] e proibido as pessoas de saírem".