Rapper indígena Katú Mirim: "Perguntam se tem como ir pintada para shows"
Filha de uma mulher preta e de pai indígena, a rapper Katú Mirim foi doada a uma família branca e evangélica com apenas 11 meses de vida. Sofreu abuso de um pastor, era proibida de ouvir música em casa que não fosse cristã e nunca pôde falar sobre sua bissexualidade ao pai adotivo, morto há dez anos.
"Quando você está acostumado a tanta desgraça, até estranha uma notícia boa", conclui a mãe de uma menina de 10 anos, após relembrar todos os percalços pelos quais passou. Por isso, ela conta que não acreditou quando viu seu nome entre os 21 artistas e bandas independentes e diversas selecionadas para o programa Aceleração Musical LabSonica.
Ao todo, foram 900 inscrições para a seleção do edital do programa criado pelo Oi Futuro e Estúdio Toca do Bandido, que visa qualificação profissional e estímulo à experimentação. Os vencedores produzirão EPs e farão um show.
Para quem já se apresentou de graça sob o pretexto dos organizadores de estarem "dando espaço para uma 'índia' cantar", passar pela primeira de três fases já é motivo para sentir-se vitoriosa.
Rap, só na escola
Nascida e criada em Campo Limpo, na periferia de São Paulo, foi nas ruas e nos intervalos da escola onde estudou que Katú teve contato com o rap. Não demorou muito para participar das chamadas batalhas. Mas, antes de firmar a carreira no hip hop, em 2017, flertou com duas bandas de rock.
"Já estava escrevendo bastante e precisava que as minhas ideias entrassem de uma maneira que transformassem as pessoas. E o rap é isso, é pé na porta, é político", diz.
Mãe solo após um casamento de 13 anos, Katú diz que não tem sido fácil viver de cultura no país. "E para o artista indígena é pior. Em todo espaço que a gente chega estamos sempre atrás, na margem da margem da sociedade", afirma.
E exemplifica. Frequentemente, ao chegar para seus shows com seu corpo tatuado, é comum ouvir: "Nossa, 'índio' fazendo rap?". Ela também já escutou que não teria seu cachê pago por causa da sua etnia.
"Acham que estão fazendo um favor. Não enxergam a gente como artista. Já ouvi muitos falando: 'Você pode fazer seu show que a gente vai te dar um espaço de fala, mas não tem cachê', sendo que todos os outros tinham. Fora que rola a hipersexualização do corpo. As pessoas perguntam se tem como eu ir pintada para os shows. É demais! Não sou assim. Chego com minha narrativa, toda tatuada e dread."
Família não acreditou em abuso
Ao falar das famílias biológica e adotiva, Katú tem o cuidado de frisar que respeita a trajetória de ambas. Os que a criaram, por exemplo, eram evangélicos. O pai, pastor. Por esse motivo, nunca apoiaram a escolha profissional da filha mais velha: o casal, que aparentemente não poderia gerar filhos, teve uma menina três anos após a adoção, com síndrome de Down.
A mãe biológica de Katú também é evangélica. Muito humilde, foi de porta em porta com a menina nos braços perguntando quem poderia cuidar da criança. Mas essa história era pouco lembrada entre os pais adotivos da artista. "Eles nem gostavam de falar que eu era adotada. Só na hora da raiva", ela lembra.
Outros temas, como sexualidade, também eram tabu dentro de casa. Aos 11, Katú foi abusada sexualmente por um pastor evangélico, amigo da família. Seus pais não acreditaram.
"Contei para eles três dias depois do ocorrido, mas meu pai falou que era mentira minha. Anos depois, quando eu já estava casada, essa pessoa foi presa e meu pai comentou sobre a prisão. Falei: 'Lembra que eu te contei que ele abusou de mim?'. Meu pai levantou da mesa, fechou a mão e nunca mais conversou comigo sobre isso. Foi difícil entender que eu não menti. E a relação com meu pai acabou naquele momento."
Por causa da família religiosa, Katú escondeu sua atração por meninas. Quando levava mulheres em casa, as apresentava apenas como amigas.
"Eu tinha que reprimir tudo, até meu fenótipo. Passei por fases de não querer pegar sol, de usar lente de contato azul e pintar o cabelo de loiro. Era uma violência que cometia comigo mesma para me enquadrar."
Encontro com a origem indígena
Foi por meio de vizinhos que Katú descobriu a história da família biológica, inclusive que o pai era da etnia boe-bororo, do Mato Grosso, mas perambulava pelas ruas de São Paulo devido ao vício em bebida.
"Meu primeiro contato foi com ele, quando eu tinha de 12 para 13 anos. Ele era morador de rua e falou do povo. Fui então resgatar essa memória", conta.
Hoje livre de amarras, ela diz que ainda não tem o apoio das mães para seguir a carreira artística, mas que elas conseguem respeitar sua trajetória, a chamando, por exemplo, pelo nome indígena, dado há quatro anos numa aldeia guarani no Jaraguá (zona oeste de São Paulo).
"O ritual de nomeação é muito forte. Quando recebi o nome, achei interessante porque não tem gênero e significa coisa boa. Toda vez que me deparo com o ódio, penso nele", afirma.
"A gente está num processo. Claro que existem pessoas homofóbicas no meu povo, mas sempre chego com respeito, sem querer impor algo. Se na aldeia é proibida alguma demonstração afetiva em público, não faço. É aos poucos que a gente consegue o respeito de cada povo. Tudo é o tempo. Não adianta querer chegar e falar: 'Vai ter que me aceitar'. Mas já levei namorada para lá, e apresentei como amiga."
Demarcação deveria ser uma luta de todos
Na famosa reunião ministerial de 22 de abril do presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Educação Abraham Weintraub manifestou seu ódio pelo termo "povos indígenas". Segundo ele mesmo falou, só existe um povo.
Katú respira antes de comentar pausadamente a fala. "Isso vem de uma cultura racista, que não enxerga o recorte, não vê que há políticas públicas feitas para a sociedade que são genocidas para os povos indígenas. Estamos falando de povos e narrativas diferentes", diz ela.
"Como pode querer colocar tudo numa mesma caixinha? O racismo que eu sofro não é igual ao racismo que sofre a mulher negra. Temos que lutar juntos, mas é preciso haver esse recorte. Ele diz isso porque querem vender a imagem de que aqui não tem racismo."
Seu colega de governo, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles, acredita ainda que o Brasil tem excesso de demarcações de terras indígenas, opinião endossada pelo presidente, para quem "essas reservas todas inviabilizam a Amazônia".
Novamente, Katú fala com calma: "A demarcação não é para o povo, mas para o planeta. Essa deveria ser uma luta de todo mundo", acredita.
"É claro que quem está no poder vende uma imagem de que é muita terra para pouco índio, mas é para um povo que na sua cultura aprendeu ser importante preservar. A vida indígena importa e é uma luta sobre a qual todos deveriam estar conscientes. Não existe nenhuma outra luta se as pessoas não abraçarem a da demarcação primeiro."
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