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Um ano após criminalização, tribunais não dispõem de dados sobre homofobia

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Imagem: Reprodução

Hygino Vasconcellos e Maria Luísa de Melo

Colaboração para Universa

13/06/2020 04h00

Apesar de ter se tornado crime há um ano, os Tribunais de Justiça não dispõem de dados sobre processos em andamento ou de pessoas condenadas por homofobia no país. Universa procurou os TJ de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Rio Grande do Sul - este último não respondeu à solicitação por "excesso de demandas". Os demais tribunais informaram que não há no sistema do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) campo (assuntos) que trate especificamente sobre homofobia e, por isso, a consulta não pode sequer ser feita.

"Não temos como extrair esses dados da base de dados, que usa os assuntos processuais para as estatísticas", informou o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. "Não foi criada pelo CNJ nenhuma classe ou assunto novo (utilizados nos sistemas eletrônicos de processos judiciais) relacionados a essa equiparação por analogia a crime de racismo no caso de homofobia. Portanto não é possível pelo sistema atual identificar eventuais processos de crimes de homofobia", justificou o Tribunal do Paraná em nota.

O Conselho Nacional de Justiça informou que a decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) determinou que "enquanto o Congresso Nacional não aprovar lei sobre o tema, será aplicada a pena de racismo para atos de homofobia" e que "sendo assim, a criminalização da LGTBfobia passou a ser considerada uma das hipóteses da Lei 7716/89, que também prevê crimes de discriminação ou preconceito por raça, cor, etnia, religião e procedência nacional". Na prática, todos os casos são classificados como racismo, sem detalhar o motivo. "Por conta disso, os tribunais não podem classificar o crime como homofobia", complementou o CNJ.

Para a advogada de direito homoafetivo e ex-desembargadora Maria Berenice Dias a situação pode atrapalhar a realização de levantamentos futuros sobre homofobia no país e, com isso, ocultar a real dimensão do problema. "É uma lei 'drástica', não prescreve e não admite fianças. No caso do racismo, a saída que a Justiça tem encontrado é, ao invés de condenar por racismo, fazer por injúria racial, que tem uma pena mais branda. Isso vai acontecer também com a homofobia."

No site do CNJ há consultas inclusive de processos ligados à Covid-19, doença que surgiu em dezembro do ano passado no mundo. Segundo Maria Berenice, isso se deve a uma portaria que determinou esse tipo de especificação, diferente da homofobia.

Para a ex-desembargadora, a falta de uma lei específica para homofobia não significa que um crime praticado contra um homossexual deixe de existir. "Não precisa da lei para alguém ser condenado. A falta de lei não deixa de se configurar homofobia ou transfobia", salienta a ex-desembargadora, que disse desconhecer condenações para esses crimes no país.

Nas delegacias, há dificuldade em registrar o crime

Passado um ano desde que o STF equiparou a homofobia a crimes de racismo, o país ainda "engatinha para a aplicação adequada da lei". É como avaliam representantes de entidades que prestam assistência ao público LGBT.
Segundo entidades, muitos crimes com clara motivação LGBTfóbica ainda são registrados como injúria comum, classificado como leves, com pena menor.

"Há muita resistência em relação à esta lei, não apenas no Judiciário e em parte do Ministério Público, mas também nas delegacias. Ainda falta conhecimento e vontade das polícias e chefias de polícia para capacitar e orientar os agentes sobre a forma correta de preencher a ocorrência", afirma Maria Eduarda Aguiar, advogada e presidente do Grupo Pela Vidda, que presta assistência à população LGBT no Rio de Janeiro.

"Há inúmeros casos de LGBTfobia que estariam incluídos na lei, mas são colocados como lesão corporal simples. Já avançamos muito ao termos uma lei que tipifique o crime, mas agora precisamos trabalhar por sua aplicabilidade. Ainda estamos engatinhando", completa Maria Eduarda, que foi a responsável pela sustentação oral da ação que criminalizou a homofobia no STF, há um ano. Ela falou em nome das travestis e transexuais, sensibilizando a Corte sobre a violência sofrida pelo grupo.

Diretor-presidente do Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero, Paulo Iotti, autor das duas ações que fizeram o STF reconhecer a homotransfobia como crime de racismo, também aponta a resistência das delegacias em reconhecer os crimes de LGBTfobia.

"É impressionante como algumas delegacias se recusam a fazer o boletim de ocorrênca de injúria racial. Ainda existe um entendimento sobre injúria racial não abarcar homofobia, mesmo após a decisão do STF. É um entendimento de má-fé. Assim, os crimes caem [são tipificados] como injúria simples, com penas pequenas. Vão para os juizados especiais criminais e não para as varas criminais, com penas de até dois anos", explica Iotti. "A criminalização foi um avanço, mas ainda precisamos tirar a decisão do papel."

Titular do Núcleo de Defesa dos Direitos Homoafetivos e da Diversidade Sexual (Nudiversis), da Defensoria Pública do do Rio de Janeiro, a defensora Letícia Furtado engrossa a reclamação dos representantes de entidades ligadas ao público LGBT.

Segundo ela, casos contra essa população registrados à exceção da Lei de Racismo são regra mesmo depois da decisão do STF. "Pegamos casos em que esses crimes são registrados como contra a honra, sequer como injúria racial. São tratados como mera ofensa", diz Letícia.

"Quando esses casos chegam pra gente, a questão já está no Judiciário e o réu está respondendo por crime de menor potencial ofensivo. Muitas vezes pedimos a revisão, mas dependemos de o juiz aceitar", completa.
Tanto no Rio quanto em São Paulo, os registros de crimes de LGBTfobia podem ser registrados em quaisquer delegacias. Mas os dois estados têm uma especializada, a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi).

Para Maria Eduarda Aguiar, o maior problema está nos registros feitos nas delegacias distritais, já que nas especializadas, o tratamento é adequado, diz. "A Decradi tem um atendimento de excelência, muito diferente das demais. Eles escutam a vítima com cuidado e atenção, para saber se houve LGBTfobia. É importante ter sensibilidade."

SP permite indicar homofobia em registro

Procurada para comentar os problemas apontados pelos representantes das entidades, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou, em nota, que "tem intensificado as ações de combate à violência sexual e de gênero. Além da especializada Decradi, todos os distritos policiais são aptos a registrar e investigar crimes contra vítimas LGBTIs, de acordo com as normas jurídicas vigentes no país".

A secretaria também informou que "desde novembro de 2015, é possível incluir o nome social e a indicação de 'homofobia/transfobia' no registro da ocorrência" e que no ano passado, 71 boletins de ocorrência foram registrados pela delegacia especializada, envolvendo a população LGBT, gerando 23 inquéritos.

Dados de boletins de ocorrência registrados fora da especializada, tendo como vítima a população LGBT, não foram informados.

Também procurada para explicar os problemas apontados sobre os registros de crimes nas delegacias, a Polícia Civil do Rio não se manifestou.