Policiais e antifascistas, elas lutam contra estereótipos da categoria
A policial civil Patrícia Vasconcelos de Oliveira, 35, conta que o início da carreira que segue há 11 anos não foi dos mais fáceis. Além do ambiente embrutecido de quem lida com a criminalidade, a polícia se mostrava também um ambiente excessivamente masculinizado em que ideais como a não violência e o cumprimento estrito do que prevê a Constituição poderiam ser mal interpretados como "falha moral", fraqueza ou, simplesmente, frouxidão.
"Nunca me permiti concordar com um comportamento que flertasse com violência, a tortura, o racismo. E, por não aceitar e não vestir o estereótipo de que o policial precisa ser embrutecido, agressivo e saber tocar o terror, eu ouvi várias vezes: 'Você é mansa demais, frouxa demais'", diz.
Patrícia explica que começou a se encontrar na profissão quando descobriu que, não apenas na Polícia Civil como em outras forças policiais, havia muitos outros com valores semelhantes aos dela. Eles integram o movimento denominado Policiais Antifascismo, que congrega cerca de 500 profissionais em todo o Brasil.
No começo deste mês, o grupo tornou público um documento "em defesa da democracia popular", com assinaturas de 503 policiais antifas, como ação "necessária às ameaças de desestabilização institucional democrática em nosso país". A iniciativa deu nome, sobrenome, posto de trabalho e unidade da federação a profissionais que têm se articulado de maneira mais enfática desde 2018.
O texto, que se posiciona contrário ao avanço autoritário no país, tem como pano de fundo uma onda de ataques a instituições como o STF (Supremo Tribunal Federal), o Congresso Nacional e a liberdade de imprensa -alguns dos pilares fundamentais em uma democracia- por parte dos apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, ele, próprio, eleito com apoio expressivo da classe policial.
"Nós, policiais antifascismo, acreditamos que o trabalhador policial deve se colocar ao lado dos demais trabalhadores no enfrentamento ao fascismo. Afinal, o projeto fascista em nosso país é um projeto de avanço no ataque aos direitos conquistados pelos trabalhadores. Essa ofensiva atinge diretamente os policiais, apontando cada vez mais para a privatização da segurança e para o aumento da precarização do seu trabalho", diz trecho do manifesto. E ainda complementa: "Disputar o reconhecimento dos policiais como trabalhadores faz parte da nossa tarefa enquanto policiais antifascismo".
Universa conversou com quatro mulheres policiais que integram o movimento. Da busca por espaço em uma profissão que já foi mais dominada por homens ao combate à violência ainda muito presente nessas corporações -a polícia brasileira está entre as que mais matam e mais morrem no mundo--, elas relatam suas experiências como antifascistas e o que as move nessa (nada frouxa) luta.
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Na Bahia: Proteger os mais frágeis
Primeira policial na família, a policial rodoviária federal Liamara Cararo Pires, 38, começou como escrivã da Polícia Civil em seu estado natal, Espírito Santo, até se tornar integrante da PRF, no ano seguinte, na Bahia.
Liamara toma por base a própria formação em direito para explicar o porquê de se apresentar como servidora pública antifascista: "O respeito à lei, à Constituição Federal e uma formação familiar muito relacionada à defesa dos direitos humanos me fizeram buscar na carreira policial o papel fundamental de proteger, na sociedade, sobretudo os mais frágeis e com menos possibilidades de defender seus direitos", afirma. "Para mim, esse é um dos significados da polícia."
A capixaba defende que policiais "não são seres que gravitam fora da sociedade" à medida que são sujeitos "de direitos e deveres, e que têm especial dever de proteger a cidadania".
"O movimento de policiais antifascistas vem se constituindo ao menos desde 2013, quando passamos a ver o crescimento de posturas ligadas ao autoritarismo, à defesa da violência, da intolerância e de opiniões unifacetadas. Como esses fatores agora tem se agudizado, isso fez o nosso movimento se organizar, aumentar e ganhar mais visibilidade", diz.
Na avaliação dela, as polícias acabam por reproduzir um cenário de desigualdade de raça, gênero e classe social que já marcam, há séculos, a sociedade brasileira. Um desafio para os policiais antifas, define, é fazer com que seus colegas se enxerguem como classe trabalhadora "oprimida e também violentada" por esse modelo social.
"Tenho colegas que, na prática diária, são antifas -fazem uma abordagem de qualidade, respeitando a legislação e o cidadão-, mas que pensam estar identificados com uma ideia oposta a isso. Esse é um grande desafio ao nosso movimento: fazer a classe entender que ela pode ser vítima da violência que ela mesma propaga. Embora tenhamos a polícia mais letal do mundo, também temos a que mais morre assassinada ou por suicídios", afirma.
No Tocantins: "Revolucionariazinha paz e amor"
A investigadora Patrícia Vasconcelos de Oliveira, 35, diz que as insinuações de que seria "frouxa" e "mansa demais" não foram as únicas que ela recebeu de colegas ao se mostrar uma propagadora de valores antifascistas.
"Defendendo a antiviolência como uma policial, inevitavelmente passei a ser vista como uma espécie de figura icônica na instituição: se não fosse a 'frouxa', era a 'revolucionariazinha paz e amor'', relata. "Lembro uma ex-delegada que defendia as mesmas ideias antifascismo e era chamada pelos outros policiais de Dalai Lama."
Formada em direito e especializada em criminologia e gestão de segurança pública, Patrícia atua há seis anos em uma Delegacia de Defesa da Mulher em Palmas. Ela considera que o ambiente a faz se sentir, hoje, "quase que em uma bolha" quando se refere à possibilidade de expressar as convicções antifascistas.
"O papel mais importante do policial antifa, para mim, é não se deixar levar por uma corporação que flerta às vezes com violência. Estamos bem na linha limítrofe disso, convivendo com quem está fora da lei o tempo todo", diz.
Segundo a investigadora, abraçar uma bandeira ideológica que não é exatamente unanimidade dentro das polícias brasileiras acabou se somando a outro rótulo com o qual, como mulher, ela teve de lidar desde o começo: o de que a polícia era um meio para homens, ou, no máximo, para mulheres menos femininas.
"Quando eu descobri o movimento antifa, pensei: 'Ufa, estou salva, não sou a torta da corporação'. Ainda mais em um meio onde se acha que é preciso ser fisicamente forte ou ter padrões masculinos para ser bom."
Até sentir-se minimente confortável em um espectro ideológico peculiar para vários de seus colegas, entretanto, Patrícia achou que desistiria da profissão. "Eu atuava em um grupo tático e foi um dos lugares onde eu mais sofri bullying institucional, por não concordar com a forma como muitas operações eram feitas", diz.
"Saí de lá despedaçada, com licença psiquiátrica, e achei mesmo que a polícia não fosse para mim. Deixei o grupo e fui me fortalecendo ao começar a estudar mais sobre o feminismo e sobre o feminismo dentro da polícia."
Questionada sobre como se sente ao ver movimentos sociais chamarem a polícia de "fascista" como reação à violência policial, a investigadora admite: "Fico magoada porque sei que os policiais não são todos farinha do mesmo saco. Mas também acho compreensível, já que os números de exercícios arbitrários do poder são altos, e a sociedade tem que reivindicar uma polícia melhor. Só não somos demônios: a saúde mental do policial está diretamente conectada com esses episódios de violência."
No Espírito Santo: Policial não é herói, mas trabalhador
Uma das coordenadoras do movimento de policiais antifascismo é a policial civil aposentada Maria Helena Cota Vasconcelos, 68, de Vitória.
Ela entrou para a polícia em 1981, ainda na ditadura militar, por meio de concurso público, quando "eram muito poucas as mulheres na polícia".
O primeiro dia de trabalho em uma delegacia, em um tempo em que essas unidades abrigavam também estruturas de carceragem precárias, quase a fez desistir da profissão.
"Vi aqueles presos sem a menor condição de higiene em frente ao lugar em que eu trabalhava e confesso que pensei em não voltar. Mas eu sabia que, se quisesse fazer alguma coisa em favor da humanidade, também não havia ambiente melhor para eu começar a agir", diz. "Porque o preso, embora privado da liberdade, continua a ter direitos humanos como a dignidade. E isso abrange também a dignidade dos policiais."
Já aposentada, Maria Helena foi conhecer outros policiais que defendiam valores antifascistas graças ao trabalho de formação sindical e popular do qual não se desligou. A conquista de espaços dentro da polícia, contudo, nunca foi fácil.
"Muitos policiais olham para o antifa como um inimigo, quando, na verdade, queremos que o policial seja respeitado como um trabalhador, possa se sindicalizar, tenha a liberdade de expor seu pensamento, sua condição de saúde e de trabalho", define.
Mesmo que o movimento dos policiais antifascismo identifique o aumento de ações que flertam com o autoritarismo no país, Maria Helena se mostra otimista: "Eu acredito que existe uma resistência e que estamos em uma construção. Só que precisamos desfazer esse mito de que o policial é um herói e construir a ideia de que também ele é um trabalhador e necessita de garantias e direitos sociais", diz.
No Rio Grande do Sul: direitos humanos para todos
A guarda civil Luciana Rocha, 49, trocou uma área de atuação próxima de sua formação em economia, na capital paulista, ao passar em um concurso na cidade de Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre. E reforçou a identificação com o movimento antifascismo também na pós-graduação —a dissertação de um mestrado prestes a ser concluído trata da relação entre capitalismo, racismo e violência.
Ela explica que foi do trabalho na secretaria municipal de desenvolvimento econômico, então sob a gestão de Fernando Haddad (PT), que começou a se entender antifa. À época, depois de uma experiência no mercado financeiro, lidava com a questão de empregos a egressos do sistema penitenciário. "Achei impressionantes o tamanho e os desdobramentos desse problema. Aquilo me chocou. Mas também me despertou para o tanto de coisa que tinha para fazer", conta. "Nunca pensei em ser militar, mas a crise de desabastecimento de água em São Paulo e a vontade de sair da cidade acabaram me levando a Porto Alegre."
Passou no concurso público para a guarda civil de Canoas e agora integra a atividade que, segundo lei federal, é essencialmente força de paz e de defesa dos direitos humanos —com projetos de prevenção à violência, mesmo que, paradoxalmente, tenha direito ao porte de arma de fogo.
O fato de ter crescido em uma família de classe média que sempre discutiu política a ajudou a consolidar o tipo de militância antifa que ela, dentro e fora do movimento dos policiais, tem buscado exercer.
"Me posicionar como antifascista desperta ressalvas de colegas que são anti-esquerdistas. Imediatamente vem aquele rótulo de que isso é defender bandido", lamenta. "Mas acredito que a prática tem que ser coerente com o discurso: tento mostrar que defender direitos humanos é fazê-lo à mulher do agressor, à criança, mas é também proteger o direito de que nós, guardas civis, tenhamos um ambiente de trabalho seguro para voltarmos para nossas famílias no fim do dia."
Um dos pontos combatidos pelo movimento que Luciana integra, por sua vez, vai de encontro à defesa do atual governo de que a população tenha o direito de ser armada.
"Eu digo aos meus colegas: 'Você vai abordar o veículo sabendo que o outro pode estar armado?' Afinal, a superioridade de força para agir tem como premissa a garantia de que o outro lado vai se intimidar. Se esse outro estiver armado, não vai aceitar abordagem. Ou seja, é preciso pegar elementos da realidade para que o sujeito consiga entender o conceito do movimento antifa."
O que é o fascismo combatido pelos antifas?
Em entrevista a Universa, o doutor em história social pela USP e professor na Universidade Estadual de Londrina José Miguel Arias Neto explicou que o fascismo é o movimento político e social que, usando de retórica populista, explora temas como "corrupção endêmica da nação" e o "declínio dos valores tradicionais e morais".
Quem cunhou a expressão foi o italiano Benito Mussolini (1883-1945), que, em 1919, fundou a organização Fasci Italiani di Combattimento. "Fasci" significa feixe, referência ao feixe de hastes de madeira com um machado no centro, símbolo da unidade do poder político na Roma Antiga.
"É um regime de extrema-direita que propõe o Estado totalitário visando, basicamente, o combate ao comunismo. Mas é marcado também por um forte culto à tradição, pelo militarismo, apologia da violência, recusa da modernidade e pela ideia constante de que há um inimigo a se combater. É a ausência do diálogo", diz Arias Neto.
Embora o termo seja usado para se referir ao fascismo italiano, historiadores estendem seu uso para outros regimes daquela época, como o nazismo alemão, o franquismo espanhol e o salazarismo português.
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