"Transmasculésbico": quadrinista debate na web o olhar de não pertencimento
Lino Arruda é muitas coisas: deficiente físico, transmasculino, lésbica, doutor em literatura e quadrinista. Com a sua última atribuição, ele começa, a partir hoje, uma série de publicações em seu Instagram. Lá, Lino vai narrar, do ponto de vista autobiográfico, a costura entre a deficiência física de uma má formação congênita nas pernas, seu processo que define como transmasculinidade e sua identificação como lésbica em um projeto chamado Monstrans: experimentando horrormônios.
"Eu nasci, sempre fui lésbica, era a lésbica da escola, ligavam para a minha mãe e falavam que não queriam a filha andando comigo. Eu tive uma infância e uma adolescência bem marcadas por essa vivência, que me construiu muito, e agora, com meu trabalho, quero falar de masculinidades lésbicas, não hegemônicas, dissidentes", explica o artista, que teve o projeto contemplado pelo Rumos Itaú Cultural e publicará em 2021 a HQ que começa hoje. O Instagram é um aperitivo para o público.
Ao contrário de muitas pessoas trans, Lino Arruda não sente a necessidade de romper com sua identidade anterior. "Tem todo o rechaço de uma vida anterior para poder ser trans e eu não me identifico desta forma, eu vejo mais em contínuo. A minha tentativa é contar essa história de uma forma mais linear. A experiência lésbica que me formou está em mim, está na cultura, em como a gente fala, como a gente come, como a gente se relaciona com o próprio corpo", explica o artista, que cresceu em Campinas (SP) e hoje se define como 'transmasculésbico'.
A transição e a perda do pertencimento lésbico
Depois da infância difícil, Lino encontrou no movimento lésbico uma rede de apoio e amizades, onde o ativismo feminista fazia parte de sua vida de forma muito presente. Havia pertencimento. Até que, bom, com a transição, deixou de haver.
"No meu caso, quando eu comecei a transicionar, em 2013, eu tinha 27 anos e nenhuma referência transexual. Tomava hormônios que vinham do Paraguai, tudo errado, uma amiga que aplicava, os hormônios eram ilegais. Eu fiquei dois anos tomando progesterona, e, em muitos sentidos, eu fui exilado desse grupo de lésbicas, meu ativismo lésbico era muito forte e de repente eu estava destoando. Muitas amigas se colocavam contrárias à hormonização, diziam que eu tinha que aceitar o meu corpo", conta ele, que relata ter se sentido, outra vez, sozinho.
"Foi difícil, por ter participado muito tempo de bases de discussão do feminismo e depois não poder mais atuar lá. As mulheres trans são acolhidas, mas os homens trans não são bem-vindos", conta Lino, que trocou o nome de batismo, Lina, por Lino, em 2016, quando ganhou uma bolsa para estudar nos EUA e viu ali a chance para se reinventar, diante das possibilidades do desconhecido.
Hoje, Lino expressa na sua arte justamente seu lugar de não pertencimento. "Eu não me identifico como homem, me identifico como transmasculino e lésbica na minha formação social cultural, eu sou moldado por uma trajetória lésbica. Embora eu seja lido mais como homem gay", ri ele
Animalesco no traço
Em seus desenhos e quadrinhos, o quadrinista muitas vezes se retrata como criaturas bizarras ou disformes, para falar de sua vida, geralmente transformando a dor em riso.
"Eu acho que escapar da figura humana fala muito sobre os corpos dissidentes. Quando eu fui ver o meu avô no leito de morte, ele não me reconheceu. Ele sabia que era eu, mas ele não me entendeu como a neta dele. Foi um momento de interstício. Homem, mulher, passado e presente. Eu uso muito essa teoria dos monstros para esses momentos em que você é o outro, o abjeto", diz ele.
O episódio com o avô marcou Lino. Mas trabalhar com arte o ajuda a reescrever sua história. "Acho que trabalhando com isso, consigo colocar a minha versão das histórias. Se você prestar atenção, meu trabalho é só sobre desgraça, daí dar a volta e fazer graça", diz ele.
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