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Cabeleireiro sem máscara e manicure sem medo: fui ao salão na quarentena

Estabelecimentos ainda não têm autorização para funcionar, mas burlam a quarentena - Getty Images/iStockphoto
Estabelecimentos ainda não têm autorização para funcionar, mas burlam a quarentena Imagem: Getty Images/iStockphoto

Camila Brandalise

De Universa

25/06/2020 04h00

Não diria que estava com saudade de ir ao salão de beleza depois de três meses de quarentena. Mas, quando soube que muitos salões já estavam reabrindo em São Paulo, mesmo sem permissão, a curiosidade falou mais alto. Eles não têm medo da doença ou de serem multados? Estão seguindo alguma regra de segurança? Olhei para as unhas do meu pé, há mais de seis meses sem ver esmalte, e achei a desculpa perfeita para fazer esta reportagem.

Eu já havia saído de casa três vezes a trabalho durante o isolamento: para acompanhar enfermeiras de UTI de covid-19, para ver a movimentação em delegacias da mulher e para conversar com clientes de um shopping no primeiro dia de reabertura das lojas. Mas confesso que foi na quarta vez, ao visitar dois salões, que senti mais medo de ser contaminada pelo coronavírus.

Nariz de fora, máscara tampando apenas a boca, a manicure que me atende no primeiro deles se justifica: "A gente precisa trabalhar, né? Como eu vou comprar as coisas para a minha bebê?", diz a moça, no sexto mês de gestação, enquanto lixa minhas unhas do pé, na terça-feira (23), em um salão no centro da cidade. Por um tempo, ela atendeu as clientes em casa, mas viu uma queda de 20% a 30% do lucro. Agora, de volta ao salão, pretende receber mais mulheres.

O funcionamento dos salões, neste momento, é ilegal. De acordo com o plano que determina a reabertura gradativa de estabelecimentos no estado, esse tipo de serviço só poderá funcionar na terceira fase, mas nenhuma cidade paulista atingiu esse ponto. Não há previsão de quando essa fase começará: segundo o governo, é preciso analisar os números de contaminações e mortes antes de avançar. Um novo pronunciamento sobre o tema será feito na sexta (26) pelo governador João Doria (PSDB).

Enquanto isso, uma "maquiada" na fachada do lugar garante o funcionamento: cadeados pendurados no portão de ferro entreaberto, a porta de vidro fechada. A ideia é que agentes de fiscalização não notem a movimentação lá dentro. Sou a única cliente naquela manhã. O cabeleireiro e outra manicure não usam máscara. "Aqui dentro, não tem problema", diz ele. Um homem entra para cortar o cabelo. Tira a máscara e senta na cadeira, mostra uma foto de como quer o corte. "Passa a máquina aqui embaixo, quero uma mudança radical."

A manicure me sugere fazer a sobrancelha: a próxima cliente só chegaria às 13h. Não há qualquer restrição em relação ao número de pessoas ali dentro. Nenhuma pergunta sobre a minha saúde, não recebo nenhuma orientação especial. "Quem pega o vírus é quem trabalha na saúde, com os doentes. Não é tudo isso que estão falando, não", diz a manicure, sobre a covid-19. Ela mesma pegou a doença, diz, há um mês, quando ainda estava em casa. Por isso, não tem mais medo de se infectar.

Quando ela me conta que já teve covid-19, com a mesma naturalidade de quem fala de um resfriadinho, sinto um frio na espinha. Se não levam a sério a doença que já matou mais de 50 mil pessoas no Brasil, que tipo de higienização e cuidado vão ter com clientes? Não consigo mais nem bater papinho de salão. Já no final do serviço, emudeço. Só quero ir embora. Em casa, jogo as roupas na máquina e corro pro banho.


"Estaremos reabrindo, agende seu horário"

A estratégia principal dos salões para avisar que estão funcionando de portas fechadas é disparar mensagens de Whatsapp para as clientes. É ali que anunciam seus próprios protocolos de segurança. "Atendimento único, um cliente por vez", destaca um. "Estamos atendendo com horários reduzidos e espaçados", propagandeia outro. "Se você não é do grupo de risco, fale com a gente, estaremos à disposição", avisa outro.

Uma amiga me conta que recebeu uma ligação da manicure avisando que começariam a atender novamente. Outra diz que a dona do salão avisou que só estava contatando "clientes VIP". Por isso, tinham ligado para ela —e porque ela tem menos de 60 anos. Uma terceira conhecida diz que em sua cidade, Mauá, na região metropolitana da capital, os salões já voltaram com tudo e, inclusive, estão atendendo —de portas abertas.

Há salões na ativa em todas as regiões da capital, mas, no geral, são estabelecimentos pequenos, comércios de bairro. Franquias, como a Onodera, disparam mensagens para vender pacotes promocionais antecipados, mas só abrirão quando houver autorização da prefeitura. "Para ajudar você a manter seu corpo pós-quarentena", diz a mensagem da Onodera.

Chego a outro cabeleireiro, no bairro de Perdizes, na zona oeste, onde agendei uma depilação. A porta de vidro está aberta e um banner na frente avisa: "Atendimento personalizado. Agende seu horário". Em uma conversa por Whatsapp, me informaram que o local só atende uma pessoa por vez. Mas, quando chego lá, há um senhor de cerca de 70 anos fazendo a mão.

"Estou tirando da minha conta pessoal para cobrir o rombo de 90% que estou tendo nesses meses", diz a proprietária que me atende com o que parece ser uma tendência nos salões: máscara tampando só a boca e o nariz para fora. A fiscalização da prefeitura passou na frente do salão há uns dias, ela conta, mas só havia um cliente dentro do estabelecimento. "Olharam, olharam e foram embora."

A prefeitura de São Paulo não tem fiscalização específica para salões de beleza. Consultada pela reportagem, informa que "fiscaliza diariamente estabelecimentos que ainda não tiveram a abertura ao público permitida". Diz ainda que, "desde o início das restrições, 620 estabelecimentos foram interditados por descumprirem as regras vigentes. Os mesmos serão desinterditados após o cumprimento do decreto".

A ideia não é multar o comércio, mas, sim, evitar aglomerações e reduzir o risco de transmissão do coronavírus. Os locais que descumprem as restrições podem ser interditados e, em caso de resistência, ter o alvará de funcionamento cassado.

A corrida pela depilação

No segundo salão, além do senhor de 70 anos fazendo a mão, estão apenas a proprietária e outra funcionária. Os três de máscara. As trabalhadoras do local se revezam: só vai uma a cada dia da semana, além da dona.

A manicure termina o serviço do cliente e me chama para a sala de depilação. Ela usa um protetor facial de acrílico, desses que cobrem do topo da cabeça até um pouco abaixo do queixo, além da máscara. Me senti como se estivesse indo fazer um procedimento de saúde, não uma depilação.

Me conta que depilar nunca foi o forte dali. Mas passou a ser desde que o lugar reabriu durante o isolamento, há um mês. "A gente teve que comprar o dobro de cera que costumava ter", diz. "É uma coisa que não dá para fazer em casa."

Convive agora com um misto de alívio, por voltar a trabalhar, e preocupação, por se contaminar. "Meu pai ou meu namorado me trazem de carro, não pego transporte público. Uso as proteções todas e, quando chego em casa, já vou tomar banho", diz.

Ali, há mais preocupação com a segurança do que no primeiro. Ainda assim, estar em uma sala fechada com uma pessoa a menos de um metro de distância de mim me faz tremer, de novo, com a possibilidade de contaminação. Ainda que o lugar siga algumas normas de segurança —cartazes nas paredes falam sobre o uso de protetores, máscaras e álcool em gel—, as poucas pessoas que trabalham ali ficam muito próximas umas das outras e dos clientes.

No final, ao pagar, compro uma máscara de algodão feita pela mãe de uma das funcionárias, a R$ 7. "Se precisar de alguma coisa, é só escrever. Estaremos aqui", diz a dona.