Antes de se consagrar como Bruxa do 71, atriz de "Chaves" foi antifascista
Se com o papel de Dona Clotilde, a Bruxa do 71, do seriado "Chaves", a atriz Angelines Fernández (1922-1994) botou medo ou fez rir crianças de toda a América Latina, na década de 1940 sua reputação era outra. Na juventude, enquanto lutava contra a ditadura militar imposta na Espanha, seu país de origem, ela era reconhecida pelos seus opositores como uma "antifa".
O termo, que voltou à tona recentemente com a onda de protestos pela morte de George Floyd (homem negro morto por um policial branco nos Estados Unidos), remete ao antifascismo e é empregado para denominar indivíduos ou grupos que enfrentam ideologias ou governos antidemocráticos.
Nos dias atuais, os presidentes dos EUA, Donald Trump, e do Brasil, Jair Bolsonaro, consideram os antifas "terroristas" e "marginais" -assim como fazia o ditador espanhol Francisco Franco ao se referir à resistência da qual Angelines participava.
Passado como guerrilheira
O pouco que se sabe a respeito de Angelines como antifascista foi revelado por sua única filha, Paloma Fernández, em algumas entrevistas concedidas após a morte da mãe. Ainda na adolescência, a atriz se aliou a revolucionários republicanos durante a Guerra Civil Espanhola e, na sequência, aos Maquis, uma guerrilha antifascista criada para combater a Ditadura Franquista (1939-1975).
"Quando atuava na guerrilha espanhola, minha mãe era classificada como antifranquista, então ela precisou deixar a terra natal, considerando que sua vida ficaria cada vez mais difícil", disse Paloma ao portal oficial do programa "Chaves", exibido desde os anos 1970.
Àquela altura, com o fim da guerra civil, a repressão militar havia se intensificado e, pouco a pouco, os antifascistas eram exterminados. Para não ser fuzilado ou preso (o que, em muitos casos, também significava a morte), era preciso fugir e foi o que fez Angelines. Em 1947, então com 25 anos, a jovem imigrou para Cuba, onde recebeu asilo, e posteriormente para o México.
Ícone feminista e antifascista
Em entrevista a Universa, Rocío González Naranjo, professora e pesquisadora pela Universidade de Huelva, na Espanha, e administradora no Facebook da comunidade "El día que supe que era feminista" (O dia em que soube que era feminista, em português), com 18 mil membros, explicou que, até recentemente, nada se sabia sobre Angelines como antifascista.
"Embora 'Chaves' também seja amplamente visto na Espanha e Angelines seja muito amada, sua história, infelizmente, foi silenciada. Por isso, não paramos de exigir justiça para as pessoas que lutaram contra o fascismo", diz. "Ela e todas as mulheres antifascistas inspiraram muitas outras. E continuamos lutando não apenas pelo reconhecimento delas nos livros de história mas também por igualdade salarial e contra os vários tipos de violência que podemos sofrer."
No Brasil, a designer Karina Gallon, militante e criadora da Peita, marca de camisetas-manifesto que ganhou repercussão nacional por ter lançado produtos com a frase "Lute como uma garota", lema conhecido dentro do movimento feminista, acredita que Angelines pode ser considerada um ícone.
"Ela era um personagem cômico, mas que, na verdade, passava para as crianças a imagem personificada que a sociedade patriarcal alimenta das feministas há séculos: de mulher solteirona, mal-amada e chata", afirma Karina. "Por isso acredito que Angelines tem muito potencial como feminista e antifascista. Na história, assim como ela, somos sempre as bruxas."
De atriz elegante a bruxa assustadora
Não é possível afirmar se o passado militante e as convicções antifascistas de Angelines contribuíram para que ela fosse escolhida para interpretar Dona Clotilde. Segundo sua filha, ela era muito determinada e tinha uma personalidade forte e ideais que, às vezes, as pessoas não aceitavam muito bem. Por isso, era tachada como sendo geniosa e difícil.
Também, ao contrário do que se pensa, sua estreia em "Chaves" foi inesperada e desafiadora, pois não tinha experiência como humorista. Nos anos 1950, quando começou a fazer filmes e novelas, os papéis que lhe eram atribuídos costumavam ser dramáticos e, no México, onde passou o resto da vida, era considerada até então uma atriz séria e de porte elegante.
No entanto, foi a Bruxa do 71 que consagrou a intérprete. Além de ter aprendido a se ajustar à personagem, de acordo com sua filha, Angelines também precisou aceitá-la. "As crianças na vida real sempre a imaginavam como uma bruxa de verdade e gritavam: 'Aí vem a bruxa!', disse Paloma Fernández.
"Ela comentava comigo que se sentia triste porque ninguém queria ficar perto dela, porque tinham medo. Depois se acostumou e não se incomodava mais em ser chamada de bruxa."
Angelines morreu em 1994, de câncer de pulmão e debilitada por uma depressão agravada pela morte de Ramón Valdés, o Seu Madruga, de quem era grande amiga. Tinha 71 anos, curiosamente o mesmo número da casa que apelidou Dona Clotilde e marcou sua vida.
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