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Como as mulheres estão desmantelando o machismo no futebol argentino

Grupo de mulheres do Feminismo Xenenze, do Boca Juniors - Arquivo Pessoal
Grupo de mulheres do Feminismo Xenenze, do Boca Juniors Imagem: Arquivo Pessoal

Luciana Rosa

Colaboração para Universa, de Buenos Aires

06/07/2020 04h00Atualizada em 06/07/2020 19h37

Desde que, no dia 3 de junho de 2015, houve a primeira marcha do movimento Ni Una Menos (Nenhuma a menos) na Argentina, a luta contra a violência de gênero só fez aumentar no país. Por ser considerado um tema não partidário, a luta ganhou ainda mais adesão em uma sociedade atualmente dividida pela trincheira política de Kirchneristas e anti-Kirchneristas.

Expressões como feminismo, empoderamento e sororidade são termos correntes no discurso popular da Argentina de hoje. Em 2018, a vitória obtida na Câmara de Deputados para a aprovação de uma lei que transformaria o aborto em um direito, ou seja, que o Estado tivesse que fornecer os recursos necessários para que seja realizado em um hospital, potencializou os movimentos feministas. Mesmo sem ter sido aprovado pelo Senado, o projeto de lei segue vigente e o atual presidente, Alberto Fernández, garantiu, em seu discurso de abertura do ano legislativo, que voltaria não só a apresentá-lo para votação como faria pressão política para que fosse aprovado.

No contexto de uma sociedade que vê as questões de gênero avançarem a passos largos, faltava ainda conquistar um dos territórios mais difíceis: o do futebol. Em 2019, porém, esse panorama começou a mudar. Um dos clubes mais populares de Buenos Aires, o Racing, aprovou o primeiro protocolo de combate à violência de gênero através de um convênio com a Organização das Nações Unidas.

"Centrado em prevenir a violência e garantir o acesso à serviços de atenção à mulheres e meninas sob esse tipo de situação", ditava o texto do protocolo. Outros times, como o Rosario Central e o Newell's Old Boys, já haviam colocado em prática, através de secretarias especializadas, experiências similares. O anúncio do Racing acenava como uma reação à denúncia de violência doméstica feita um mês antes contra seu atacante Jonatan Cristaldo, quem, no entanto, seguiu sendo parte do time.

A notícia, divulgada no último dia 20 de junho, de que um maiores clubes do país, o River Plate, acabara de se unir a Rosario Central, Newell's Old Boys, San Lorenzo, Vélez Sarsfield, Racing, Banfield e Huracán, que já possuíam um plano de ação para a prevenção da violência de gênero, foi considerado um importante passo para as torcedoras. "Nosso objetivo e o mais importante para nós era poder incluir a perspectiva de gênero no clube", diz Yamila Mustafá, da agrupação River Feminista, que participou da elaboração do texto.

Como funcionam os protocolos

Os protocolos consistem basicamente na aplicação de uma Lei chamada Micaela, que prevê a "obrigatoriedade da capacitação em gênero e violência para toda as pessoas que desempenhem uma função pública". A normativa recebeu esse nome em homenagem à jovem de 21 anos Micaela García, vítima de um feminicídio em 2017. O crime ocorrido na cidade de Gualeguay comoveu o país e chamou muito a atenção pelo fato de Micaela ser uma ativa militante do Ni Una Menos (Nenhuma a menos). "Esse protocolo baseado em ações de educação preventiva está inspirado na Lei Micaela, ainda que ela não esteja pensada para os clubes de futebol", diz Yamila.

"É a capacitação obrigatória em temas de gênero e violência contra as mulheres para todas as pessoas com poder de decisão, treinadores e professores", completa a advogada Paula Ojeda, quem conseguiu diversos avanços junto ao clube Veléz Sarsfield, onde trabalha com políticas de gênero.

"Pela primeira vez, as reclamações sobre o machismo estrutural do mundo do futebol, estão sendo ouvidas. Obviamente com diferentes níveis de escuta, de atenção e preocupação por parte dos clubes. Mas são ouvidas porque se conseguiu visibilizar que a violência com motivações de gênero é um problema da nossa sociedade e que os clubes devem fazer algo a respeito", analisa Julia Hang, doutora em sociologia que se dedica a pesquisar o mundo do esporte.

Nesse sentido, o Veléz Sarsfield foi pioneiro na criação de uma área específica para trabalhar o combate à violência de gênero. Além da criação do departamento de mulheres, Paula Ojeda, conseguiu abrir caminho para que fosse incluída uma cláusula nos novos contratos dos jogadores, permitindo sua rescisão diante da condenação por crimes de violência machista.

"Eu acho que os clubes de futebol, em especial aqui na argentina, têm uma grande responsabilidade social e não podem abster-se diante de uma situação de violência de gênero. Em um princípio, quando eu apresentei o projeto, o clube não entendia muito, pois não havia nenhum antecedente do tipo no futebol. Assim, aos poucos, fomos dando forma a um setor de violência de gênero que obteve esse tipo de resultado", conta Paula sobre o caminho até conquistar a inclusão da cláusula.

A visibilidade conseguida por Paula e a comissão de mulheres do Vélez no caso da contratação de Ricardo Centurión foi chave para conseguir a inclusão da cláusula. O volante é um conhecido garoto problema e carrega mais de uma denúncia de violência machista em seu histórico.

"Eu me reuni com o presidente por duas ou três vezes para deliberar sobre o tema e apresentei a ele meus motivos para estar contra a vinda do jogador. Chegamos à conclusão de incluir a cláusula, que era inédita no futebol, onde os jogadores contratados a partir de janeiro de 2020 têm de submeter-se ao protocolo de violência de gênero da instituição", comemora Ojeda.

River passa a ter cota para mulher na diretoria

O documento estabelece uma cota de 20% de mulheres nas próximas eleições para a mesa diretora do River, além de contemplar medidas de educação e um código de ação para prevenir a violência contra as mulheres e à diversidade no âmbito da instituição. "Essa cota corresponde à quantidade de mulheres sócias do clube, que somam 16%. Portanto, não é um número que fique abaixo da sua representatividade, mas, ao contrário, dará a elas uma representação até mesmo favorável", explica o vice-presidente do River, Stefano Di Carlo.

Apesar de já estar trabalhando na elaboração do protocolo há cerca de 6 meses, o afastamento do jogador Ernesto Farías, investigado na Justiça por uma denúncia de tentativa de feminicídio feita há um mês, deixou em evidência a necessidade de ter medidas concretas para lidar com o tema. O jogador já teve a denúncia derrubada, no entanto, seu caso foi o estopim que faltava para que, mesmo com o futebol paralisado pela pandemia, o protocolo avançasse como uma medida prioritária.

No caso de outro grande do futebol argentino, o Boca Juniors, a acusação de violência de gênero feita pela namorada do atacante colombiano Sebastián Villas em abril serviu como um alerta de que o clube não poderia deixar o assunto para depois. Em pleno período de quarentena obrigatória que vive a Argentina desde o último dia 20 de março, a colombiana Daniela Cortés publicou fotos e vídeos nas redes sociais nos quais é possível ver os machucados provocados pelo suposto comportamento violento de Villas.

Com o futebol paralisado, o Boca apenas emitiu um comunicado de que estava em "contato com os advogados do jogador para obter mais informações sobre o episódio, e assim, tomar as devidas providências".

Mercedes Palazzo, integrante da agrupação Feminismo Xeneize, está trabalhando desde março junto a outros setores do Boca Juniors na proposta de um protocolo de atuação frente à violência de gênero a ser apresentado formalmente nesta semana.

Segundo o plano de ação, a sugestão é que caso "o Boca fique sabendo de uma situação pública que envolva um jogador, seja o mesmo clube quem tenha que se colocar à disposição da vítima, para assessorá-la e orientá-la", explica. O que para Daniela, por exemplo, teria feito toda a diferença, já que a jovem contava apenas com seu agressor no país para onde se mudou para estar junto a ele. "Sinto uma dor muito grande de estar em um país que não conheço e onde estou sozinha", declarou a jovem logo após fazer a denúncia.

"Existe uma pressão social que, associada a uma maior abertura da atual diretoria, abriu caminho para a discussão do protocolo", conta Mercedes, quem reconhece que "a luta feminista teve que se intensificar dentro dos clubes esportivos, especialmente do futebol que, na Argentina, é o núcleo mais forte do machismo".

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do publicado na primeira versão, a legenda correta para a imagem de destaque é do grupo Feminismo Xenenze, do Boca Juniors