Troco trabalho por comida: sem renda, elas fazem faxina por arroz e feijão
Silvia* trabalhou como diarista durante 20 dos seus 56 anos. Separada, com dois filhos desempregados e um neto de sete anos morando com ela, viu-se sem emprego desde o início da quarentena decretada por causa do novo coronavírus. Ao ver a comida da casa por acabar, a moradora de Pacajus, a cerca de 50 quilômetros de Fortaleza, escreveu numa página de empregos no Facebook.
"Quem estiver precisando de uma boa organização, ou para cozinhar, lavar, cozinhar, nos chame, ou troco por alimentos como leite, arroz, feijão, ovos, porque as nossas compras estão chegando a zero, e estou muito preocupada."
Universa localizou em redes sociais pelo menos mais seis publicações parecidas com a de Silvia, em que mulheres oferecem serviços domésticos em troca de comida.
Silvia, que pediu para ter sua identidade preservada, concorda que não deveria propor trocar trabalho por comida. Seu serviço deveria ser remunerado. Mas, quando questionada sobre os motivos que levaram-na a fazer isso, devolve outra pergunta:
"Que opção eu tenho? Moro em uma cidade pequena, longe de Fortaleza, onde teria mais oportunidade de trabalho. Lá, a diária custa R$ 100, mas gastaria cerca de R$ 40 só de passagem. Aqui eu faxino o dia inteiro e, quando termino, me dão arroz, feijão, fralda, leite. E tem umas pessoas que dão mais R$ 20", justifica ela, que recebeu duas parcelas do auxílio emergencial do governo, no valor de R$ 600 cada um, mas precisou usar o dinheiro para fazer dois exames.
Silvia tem diabetes e seu rim está dilatado. Sem vaga para fazer exames no serviço público e sentindo muitas dores, ela resolveu pagar por duas análises de imagem: uma tomografia e uma cintilografia, num valor total de R$ 950, para verificar se precisa marcar logo a cirurgia de que necessita.
Mas, após a publicação do post em que contava um pouco a sua história numa página em que trabalhadoras domésticas anunciam seus serviços, formou-se uma rede de solidariedade e algumas mulheres se juntaram para fazer uma vaquinha e enviar dinheiro para ela.
"Deu para comprar o leite da minha neta e uma cartela de ovos", diz Silvia.
Condição análoga à de escravidão
A promotora Adriana Reis Araújo, do Ministério Público do Trabalho de São Paulo e coordenadora nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades, que atua no combate à exclusão social e à discriminação no trabalho, através de campanhas e ações, avisa que qualquer pessoa que aceitar empregar alguém em troca de comida pode ser processada.
"A gente não pode pensar numa situação tão degradante onde está se trocando o tempo de trabalho por comida. Isso é condição de trabalho análoga à escravidão. O trabalho tem que ser remunerado de forma digna. Para isso, existe o salário mínimo, previsto em lei. Esse é o parâmetro básico", explica Adriana.
"A melhor maneira de ajudar é acolher e reconhecer todos os direitos da trabalhadora. Quem quiser ajudar deve buscar entidades ou coletivos que estejam entregando cesta básica. E cobrar do governo a ampliação do auxílio para essas mulheres. O importante é não abrir espaço para a exploração."
Para quem procura o trabalho em troca de alimento, o ideal é a remuneração, ela segue ensinando:
"A mulher não pode abrir espaço para exploração, porque ao mesmo tempo em que temos pessoas bem-intencionadas, temos o contrário disso, que podem se utilizar desse momento de desespero. Ela precisa entender que corre o risco de abrir portas para situações abusivas".
Na comunidade de Paraisópolis, na zona sul de São Paulo, por exemplo, a iniciativa Adote uma Diarista vem reunindo doações de cestas básicas, kits de higiene e dinheiro e distribuindo a essas mulheres. Mais de mil trabalhadoras foram beneficiadas com as cestas e os kits. Outras 170 receberam também um auxílio de R$ 300.
A iniciativa vai até o dia 31 de julho, data em que a comunidade espera ter arrecadado R$ 200 mil. Até o dia 8, o grupo havia conseguido reunir R$ 119,6 mil.
As histórias se repetem em todo o país. Elaine Cristina, de 34 anos, disse a Universa que conseguiu trocar seu serviço de faxina por uma cesta básica. Mas, recentemente, teve o botijão de gás roubado de dentro da sua casa, em Suzano, na região metropolitana de São Paulo, num dos escassos dias em que conseguiu sair para trabalhar. Então não pôde cozinhar a comida que ganhou.
"Eu já limpei uma casa de cinco cômodos em troca de três pratos de comida. Perguntei se a patroa poderia me dar também uma cesta básica. Ela disse que não, que só poderia dar o jantar naquele dia. Só Deus sabe o que já passei", ela diz.
Mãe solo, Elaine mora com os dois filhos, de 11 e 4 anos, e conta com a ajuda de um amigo para cozinhar na casa dele. Seus pais já morreram, e o pai das crianças vive em situação de rua. Antes da pandemia, ela se virava como faxineira, babá e até ajudante de obras. Agora, o máximo que consegue são trocados e comida. O auxílio emergencial, ela diz, ainda não caiu.
"Tenho medo de fazer esses posts, de ser enganada, de exploração, mas foi a única saída. Meus filhos estavam sem nada em casa", diz.
Reportagem do blog Mulherias, de Universa, alertou para o fato de o trabalho doméstico ser uma mão de obra não qualificada e que paga muito mal. Quem tem a sorte de ter a carteira assinada recebe em média R$ 1.269.
Em tempos de coronavírus, diz o texto, novos desafios foram colocados à mesa para as 6,356 milhões de trabalhadoras domésticas —tratadas aqui no feminino porque são 97% desse total, a partir de dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad), de novembro de 2019. Entre essas, mais de 72% não têm contrato, direitos trabalhistas nem remuneração garantida. É nesse cenário de informalidade recorde e muita incerteza que as trabalhadoras domésticas enfrentam a covid-19.
O presidente do Instituto Doméstica Legal, que oferece serviços de departamento pessoal e consultoria jurídica a empregadores e trabalhadores domésticos, Mario Avelino, diz a Universa que consegue compreender o desespero das mulheres que trocam o trabalho por comida, mas faz um alerta a quem se vale da condição em que elas se encontram para tirar proveito da situação.
"Não é ético um contratante pagar com comida, material de higiene ou roupas o serviço profissional de alguém. O valor em dinheiro do preço de uma diária é um acordo entre contratante e contratado. Que o trabalho seja feito e o preço combinado. Se esse trabalho for prestado de maneira contínua e não houver registro, configura uma relação de emprego e é ilegal. Manter alguém trabalhando diariamente ou três vezes por semana sem os direitos trabalhistas, pagando com um prato de comida ou uma cesta básica pode ser considerado trabalho escravo."
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