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"Risco de eu ser morto pela polícia é maior que por coronavirus", diz trans

Raphael Henrique Martins é educador social  - Arquivo Pessoal
Raphael Henrique Martins é educador social Imagem: Arquivo Pessoal

Felippe Canale

Colaboração para Universa

15/07/2020 04h00

Raphael Henrique Martins, 33, é educador social e diz não se sentir seguro morando na periferia da zona sul de São Paulo. "Eu sou um homem trans e negro. O risco de eu ser confundido ou até baleado pela polícia é maior do que a probabilidade de eu ser infectado pelo coronavírus. Eu tenho muito medo de levar um enquadro e a polícia plantar provas falsas ou sumir comigo."

Ele também é o fundador e capitão do time de futebol Meninos Bons de Bola, formado exclusivamente por homens trans, no qual eles aproveitam o final de cada treino para trocarem experiências e relatos sobre as suas vidas. Ele diz que todo dia ao acordar, sua meta é uma só: se manter vivo.

Segundo uma pesquisa divulgada em 2019 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a população negra do Brasil tem 2,7 mais chances de ser vítima de assassina-to do que a branca. E somado a este fator, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial de assassinatos de transexuais, segundo um dossiê feito pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Leia abaixo o seu relato.

Infância turbulenta e 3 tentativas de adoção

raphael - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

"A minha infância foi bem turbulenta. Minha mãe era usuária de drogas, perdeu a minha guarda e eu fui criado em orfanatos e abrigos até a minha adolescência. Neste período, fui para adoção umas três vezes e voltei, pois queria ficar com meu irmão. Até que conheci uma família que me adotou aos 14 anos e me levava para visitá-lo no orfanato de vez em quando. Mas quando eu falei para minha nova família que eu gostava de mulheres, pois naquela época eu ainda me identificava como uma mulher lésbica, eles não aceitaram e alugaram uma casa para que eu ficasse morando sozinho, aos 18 anos.

Quando me assumi como um homem transexual, aos 28, a minha mãe estava doente e me deu esse nome de Raphael antes de falecer. Foi somente a partir daí que fui me entendendo, me aceitando e me identificando com tudo o que eu sentia e queria ser. Eu comecei a minha transição de gênero um pouco tarde, já trabalhava no Centro de Referencia e Defesa da Diversidade, e foi lá que conheci o termo trans.

Na época eu era casado com uma mulher, mas ela não aceitou [a transição de gênero] e acabamos terminando o nosso relacionamento. Alguns amigos se afastaram, mas outros se mantiveram por perto e me apoiam muito até hoje.

Você tem mais medo da polícia ou da pandemia?

Ser um homem preto no Brasil já é difícil, mas agora imagine ser um homem trans, preto e periférico. Antes da transição eu sofria assédios nas ruas por ser uma mulher negra, mas só depois da transição que eu passei a sentir na pele também outros tipos de violência.

Como homem negro e trans eu levo enquadro da polícia quase todo dia. Se vejo uma viatura, eu já entro em pânico.

Em cada estabelecimento que eu entro sou perseguido pelos seguranças, pois eles pensam que vou roubar algo. Praticar esportes nas ruas nem pensar, pois se eu vou correr as pessoas acham que eu sou um bandido fugindo de algo. Você, pessoa branca, já deixou de correr na rua com medo de ser confundido com ladrão? Pois é, bem-vindo à minha realidade.

Neste momento atual de pandemia eu não posso nem usar máscara para me proteger do vírus, pois as pessoas ficam com medo achando que sou bandido.

O grupo Meninos Bons de Bola - Divulgação - Divulgação
O grupo Meninos Bons de Bola, criado por Raphael Henrique Martins
Imagem: Divulgação

"Há uma fila imensa no serviço público para retirar mamas"

Aqui em São Paulo temos ambulatórios públicos para o processo de transição de gênero, onde geralmente passamos com um endocrinologista para começar a tomar os hormônios. Por direito, teríamos também apoio psicológico gratuito, mas quase nunca há disponibilidade para este serviço e quem pode acaba fazendo terapia particular mesmo.

Fazer a cirurgia de retirada completa dos seios, a mastectomia, também envolve muita burocracia e a demora na fila de espera é imensa. Então, na maior parte dos casos, nós precisamos arrecadar dinheiro na internet, a tal da vaquinha online, para fazer a cirurgia no particular ou ir guardando dinheiro ao longo da vida para finalmente realizar o sonho de retirar as mamas.

Ser um homem de útero não me faz ser menos homem e cabe as pessoas respeitarem a minha existência! Não tenho vergonha de quem eu sou, sinto orgulho de mim e da minha trajetória.

Meninos Bons de Bola, um sonho que virou realidade

Eu sempre joguei futebol, inclusive no profissional, mas depois que me assumi como trans não consegui mais jogar, por preconceito e também pela falta de oportunidades dadas para pessoas como eu. Então, em 2016 resolvi formar o projeto Meninos Bons De Bola para que todos os meninos trans pudessem ter um local para cuidarem do corpo e da mente.

Além de jogarmos futebol, temos sempre uma roda de conversa no final de cada treino para verbalizarmos como estamos nos sentindo e também sobre como foi a nossa semana, tudo com acompanhamento de uma psicologa voluntária. Hoje, posso dizer com muito orgulho que temos não somente um time, mas também uma familia.

O que antes era apenas um sonho pessoal, agora se tornou uma realidade coletiva. Esse projeto representa tudo para mim, já é parte da minha vida.

A comunidade LGBTQ+ é muito desunida na minha opinião, pois me parece que cada um está preocupado apenas com a visibilidade e preservação do seu próprio grupo ou letra dentro desta sigla. Para que não sabe, a letra T representa travestis, transexuais e transgêneros. Eu vejo muitos gays ou lésbicas sendo preconceituosos, menosprezando ou até ridicularizando as pessoas que representam estes três grupos.

A desculpa é sempre a mesma: "Ah, isso não entra na minha cabeça". A real é que ninguém precisa entender, mas todos deveriam obrigatoriamente respeitar

Isso é o mínimo que podemos exigir dentro de uma sociedade que se dispõe a ser civilizada, pois somos todos cidadãos, independentemente da nossa orientação sexual ou identidade de gênero.

Eu creio que ainda falta muita informação sobre a comunidade trans e por isso somos tão marginalizados pela sociedade em geral. É como se fôssemos invisíveis aos olhos de quem prefere acreditar que a gente não existe, e ao mesmo tempo somos constantemente alvo de preconceito e violência.

Quantas pessoas trans há no seu local de trabalho? Quantas há dentro da sua escola ou da sua faculdade? Infelizmente, a resposta é "zero" e isso precisa mudar, pois somos seres humanos e temos as mesmas habilidades e competências que qualquer outra pessoa. O que nos falta são visibilidade e oportunidades. Não queremos benefícios. Queremos o que todo mundo merece, que é respeito e a liberdade de sermos nós mesmos