"A frase 'nem parece autista' é cheia de preconceitos", diz fisiculturista
Ex-campeã catarinense e campeã brasileira de fisiculturismo, personal trainer Priscilla Peres tem 38 e é mãe de dois: Kauê, 20, e Salomão, 3. Uma mulher determinada, que está se formando em educação física, mas quer mesmo é cursar medicina. Interesse? Assuntos ligados a tratamentos de portadores de necessidades especiais. Ela está estudando sozinha para o Enem e avaliando se será possível arcar com os custos e o tempo de estudo necessários para se formar.
A catarinense se preparava para na próxima madrugada iniciar uma viagem a negócios em família quando encaixou um papo com Universa. A conversa por vídeo aconteceu quando ela chegou em casa depois de aproveitar a reabertura dos salões em estado para retocar as luzes. No dia anterior, ao combinar a entrevista, comentou: "Não dá para ir com esse cabelo bicolor na viagem! Estou preparando a minha cabeça para ir ao salão desde agora. É tenebroso para mim. Por conta da parte sensorial, o barulho dos secadores me deixa atordoada. Uso tampão de ouvido". Ela aprendeu a viver com as reações sensoriais e os tratamentos de comorbidades de algo que só foi diagnóstico há 2 anos: Síndrome de Asperger, um estado do espectro autista. "É uma deficiência oculta", explica.
Se o autismo de Priscilla é oculto, após seu diagnóstico, o que ela não quer mais ver é um preconceito velado. Para isso, usa seu lugar de fala e coloca o autista na sociedade como um cidadão, com suas potências e limitações. Desde de agosto de 2019, além de alimentar sua conta pessoal com perfil fitness no Instagram, atualmente com 151 mil seguidores, ela compartilha informações e suas experiências no @Mundo.Asperger.
No espaço virtual, defende posições como: "Autismo não é moda", "Parem de romantizar o autismo", "A diferença entre o autismo leve e autismo severo é que no leve suas limitações são ignoradas e no severo sua potências são ignoradas" e "Por trás da frase: 'não parece autista', existem cem tipos de preconceitos e, acima de tudo, ignorância". Abaixo ela conta suas vivências e defende uma sociedade mais informada e menos capacitista - quando pessoas com alguma deficiência são entendidas como exceções e o normal é visto como ausência de deficiência.
Colecionando CIDs
"Ao longo da minha vida recebi vários diagnósticos: transtorno bipolar, depressão, síndrome do pânico, TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), Síndrome de Tourette; comorbidades. Brinco que eu coleciono CIDs (siga da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde). Não me sentia completa porque vivia dopada de remédios. Nesse meio tempo me separei de uma relação complicada com o pai do meu primeiro filho e tive 3 anos de depressão. Fiquei dentro do quarto.
Foram muitos psiquiatras e tentativas. Há 3 anos o médico do meu pai disse que eu tinha que levá-lo ao neurologista porque ele tem autismo. Neguei: 'Não pode ser. Imagina meu pai, autista?'. Eu já tinha tido o diagnóstico de autismo aos 22 anos e não levei a sério porque nem sabia o que era. Foi aquele preconceito que hoje vejo do outro lado "Meu Deus, está me chamando de mais doida?".
Comecei a juntar as peças até que encontrei com um neuropediatra que me fez perguntas que me descreviam. "Não posso fazer seu diagnóstico, mas te encaminho para um médico", ele disse.
Consciência e renascimento
Quando recebi o diagnóstico, me senti perdida, porque você não encontra quase autistas adultos, mais crianças. Criei o Mundo Asperger porque queria encontrar pessoas como eu. Saber o que era, como que era. Perdi um pouco da minha identidade e ganhei uma nova. Comecei a encontrar vários autistas adultos e muitos que pensam como eu. Me senti acolhida, comecei a aprender e ensinar. É muito bacana.
Agora sei o que tenho, o que acontece comigo na realidade. Consigo evitar uma crise ou ofender as pessoas, por exemplo; porque o autista não tem trava na língua, não sabe que está ofendendo. Eu me redescobri, renasci. O que eu quero hoje é mostrar que você pode enfrentar o preconceito, especialmente para a próxima geração. Já sofri preconceitos ao estar em crise, pegar uma fila preferencial, apresentar a carteirinha após ser questionada e a pessoa do caixa perguntar: "Mas isso é de verdade? Ou você está carregando só para furar fila?". E é isso que não quero que aconteça.
Autismo não é moda
As pessoas me perguntam: "Nossa, mas você é autista, como você consegue trabalhar com o barulho da academia?". Me condicionei e me preparei psicologicamente para trabalhar. Pode ocorrer uma sobrecarga sensorial e os sons começarem a se misturar. Então o autista tem estereotipia, começa a se balançar para conseguir nivelar esses sons de novo. Se for mais sério melhor parar, mas é difícil eu ter uma convulsão atualmente, me autorregulo.
Encontrei um psicólogo muito bom e investigamos juntos por 1 ano, mas ele já me tratava como autista. "Se tu não és, quem que é?", brincava. Chegamos a um denominador comum: existem pessoas e pessoas, profissionais e profissionais. O autismo parece que virou moda, assim como o transtorno bipolar tinha virado.
A criança chega e já se diz: "ah, é autismo", mas não é assim. Autismo é coisa séria. Autismo é uma coisa que vai te dar uma CID (Classificação Internacional de Doenças), vai estar na sua carteira de identidade. Os pais precisam ficar atentos.
O que tem me incomodado é o comércio em cima de uma síndrome, como se fosse moda. Prometendo cura do autismo, vendendo livro, comercializando em cima da nossa causa. Acho isso injusto
Autismo não é doença
É importante abrir os olhos para não cair no vitimismo: autista não é vítima porque autismo não é doença. Você tem uma parte do seu cérebro, a sensorial, que funciona mais rápido, e a parte de fala, de leitura de tipos, sobre entender o que os outros expressam, que funciona de outra forma. O exemplo é sarcasmo e entrelinhas, não entendemos. Tem que ser muito claro no que se fala que para a gente possa entender. Em compensação, o sensorial é mais aguçado.
Não é fácil, é algo interno, mas eu não acho legal se esconder atrás do diagnóstico. Eu não sou uma coitadinha falando com você porque eu tenho autismo, se eu cometi um erro hoje de manhã não é porque sou autista, é porque fui 'burra'. Você é responsável por você. Mães e pais de autistas precisam tomar cuidado em dizer algo como: 'meu filho é doente' para não colocá-los em situação de coitados.
Abuso sexual camuflado
Eu internalizei algo muito grave que aconteceu aos 5, 6 anos. Camuflei um abuso sexual. Descobri e assumi o que aconteceu numa conversa com o psicólogo há dois meses. Achava "que não era", "que não era", mas isso pesou nas comorbidades, me fez ficar mais chorona, deprimida, dependente da minha mãe e meus avós na infância; potencializou as questões até hoje. Tinha pesadelos reais de coisas horríveis, demoníacas. Meu marido (Cássio Noronha Martins, fisiotepeuta, 31 anos) tentava me tirar de um sono agoniante onde eu gritava, chorava. Contei para a minha mãe 34 anos depois. Disse que tinha medo de contar, na época só abraçava ela e chorava. Me lembro disso bem vívido na mente. Quando contei para a minha mãe, me libertei.
Então a questão às vezes não é só o autismo, um transtorno em si, mas são as comorbidades, os traumas, porque o ser humano seja neurotípico ou autista, carrega muita coisa.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.