Mulheres negras na política: "Verba vai primeiro para loiras de olho azul"
Desde que a primeira mulher negra foi eleita para um cargo político no Brasil (Antonieta de Barros se elegeu deputada estadual em Santa Catarina, em 1935), o país caminhou pouco. Passados 85 anos, mulheres negras não chegam a 1% das assembleias legislativas e a 5% das câmaras de vereadores. Nas prefeituras do país, também são subrepresentadas: 3% ocupam o cargo máximo dos executivos municipais. Não há uma sequer comandando uma capital.
Os números escancaram a falta de representatividade, uma vez que elas compõem 25% da população brasileira. Em 2020, nas eleições para câmaras de vereadores e prefeituras, há maior mobilização por parte de possíveis candidatas, de coletivos para ajudá-las nas campanhas e de partidos para aumentar o quadro de candidaturas.
Mas por que há tão poucas mulheres negras na política brasileira? E por que é importante que esses números aumentem? Universa conversou com pré-candidatas e nomes experientes para responder a essas perguntas.
"Dinheiro do partido vai para mulheres bonitas"
O primeiro problema é o financiamento —e o racismo presente na distribuição da verba. Pré-candidata à vereadora em São Paulo pelo Podemos, Cidinha Raiz, que em 2018 foi a primeira negra a disputar o Senado no estado, pelo MDB, conta que, na divisão de verba, os primeiros beneficiados são os amigos dos dirigentes.
"Depois, quando dividem os 30% das mulheres, a maior quantia vai para as loiras de olhos azuis, para as que são consideradas mulheres bonitas, porque, com dinheiro, elas vão ter mais tempo para aparecer na televisão e mais atenção dos eleitores, na lógica do partido", diz Cidinha. "Aí, passam para as candidatas que têm mais chance e, por último, para as mulheres negras."
A viabilização de recursos é um ponto fundamental em qualquer campanha. "Na primeira vez que me candidatei, saí do meu emprego meses antes da eleição, tive que receber de algum lugar", afirma a deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG), pré-candidata à prefeitura de Belo Horizonte. "Não é nem sobre falta de preparo, mas de condições reais. A candidatura em si é um sacrifício muito grande. Você precisa abrir mão de tudo para fazer uma campanha de qualidade", diz.
Leticia Gabriella, pré-candidata à vereadora em São Paulo, aponta também a falta de apoio familiar que as impede de se dedicar à política. "O histórico das mulheres negras é de abandono. Mães solo, sem uma família que as apoie. No meu caso, tenho uma família muito presente, mas sei que sou um exemplo fora da curva", diz. "E isso não é só de agora, durante uma campanha. Vem de antes. Minhas amigas da época da escola ficaram grávidas e não fizeram o ensino superior, por exemplo."
Representatividade importa, sim
Para Áurea, ter mais mulheres negras na política significa seguir princípios democráticos. "Se somos um quarto da população brasileira, era de se esperar essa representação no parlamento", diz. "Além disso, as experiências das mulheres dos diversos grupos precisam ser defendidas e apresentadas por quem as viveu. Não adianta ter aliadas apenas. É importante, mas não resolve tudo. Precisamos que mulheres negras contem suas próprias histórias porque, do contrário, suas necessidades ficarão em segundo plano."
Pré-candidata à prefeitura de Salvador pelo PT, a major Denice Santiago, que pode ser a primeira pessoa negra eleita para comandar a capital baiana, acredita que sua candidatura em si já é importante para que outras mulheres entendam que elas também têm essa oportunidade, por mais difícil que seja.
"Sei que vou enfrentar ataques racistas porque o racismo tenta dizer o tempo todo que esse não é nosso lugar. E são esses ataques que tiram da mente das outras mulheres negras a possibilidade de entrar para a política. Muitas querem, mas não conseguem furar a bolha. Acredito que uma campanha como a minha é uma maneira de criar oportunidades para outras", diz. "Por enquanto, já enfrentei machismo velado, como quando decidi me colocar à disposição do partido e perguntaram: 'Mas seu marido vai deixar você concorrer?'", diz.
"Se uma de nós for eleita, todas vão aplaudir"
Para Letícia, é importante que as mulheres negras que estão entrando na política agora tenham em mente as dificuldades e criem métodos para enfrentá-las. "É importante buscar caminhos efetivos para resolver obstáculos, criar projetos e levar essas discussões de raça e gênero para dentro do partido", diz a pré-candidata. "Se não for pelo diálogo, tem que ser por constrangimento mesmo, cobrando-os por mais representatividade. Os partidos já entenderam a potência da população negra, agora precisam assumir essa responsabilidade."
Letícia ressalta também que, ainda que haja uma concorrência política natural entre as candidatas, existe também uma ajuda mútua entre mulheres negras em campanha, com distintos partidos e ideologias. "Mesmo que pensemos diferente, o importante é ver uma de nós sendo eleita. Se uma de nós chegar lá, já vamos aplaudir."
O apoio às novas candidaturas vem também de coletivos criados para dar suporte às que pensam em concorrer. Principalmente desde 2018, após a morte da vereadora Marielle Franco, houve uma insurgência de grupos incentivando mais mulheres negras, como Marielle, a entrarem para a política. É o caso do movimento Mulheres Negras Decidem, que tem como uma das fundadoras a estatística Juliana Marques, do Data_labe, laboratório de dados e narrativas do Complexo da Maré, favela carioca.
O Mulheres Negras Decidem promove cursos de formação política. Também faz uma espécie de mapeamento de líderes comunitárias e ativistas, justamente para reconhecer o potencial de mulheres à margem da política institucional. "Neste ano, inspiradas pela intensa mobilização de mulheres negras a fim de mitigar os impactos negativos da pandemia em suas comunidades, fizemos a pesquisa Para Onde Vamos. Nela, encontramos 245 mulheres negras ativistas de todo o território brasileiro", explica Juliana.
Ela também ressalta a importância de se prestar ajuda para as novatas, a fim de aumentar e fortalecer novas candidaturas. "Sabemos que as condições das mulheres em campanhas eleitorais são desiguais: de tempo, recursos, acessos. Além disso, tem a dimensão da negação do espaço público, do espaço político. Quando uma de nós acessa esse espaço, é por meio dos grupos que compartilhamos estratégias para que mais mulheres também possam acessá-lo."
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