Mães não conseguem registrar filhos nascidos em casa, na cidade de Paraty
Em meio à pandemia provocada pela covid-19, a psicóloga e doula Debora Alejandra Oesquer, 33, escolheu ter a sua terceira filha, Flor, não num hospital, mas em sua casa, na cidade de Paraty (RJ). Na hora do parto, foi assistida por uma parteira tradicional e por duas doulas —profissional que dá apoio à mãe na hora do parto— e descreve o momento como "maravilhoso". Mas, dois meses depois, ela ainda não conseguiu emitir a Declaração de Nascido Vivo (DNV) da menina.
A DNV é obrigatória e necessária para obter a certidão de nascimento, documento que dá acesso à saúde pública, entre outros direitos constitucionais da criança. "Minha filha não tem documento. Isso me leva a uma situação de estresse, num momento de resguardo, em que deveria estar tranquila", diz Debora. Sem a certidão, a mãe não pode, por exemplo, viajar com a filha ou fazer uma carteira de vacinação para a criança.
A Declaração de Nascido Vivo contém dados como altura, peso do bebê e hora de nascimento e deve ser preenchida por um profissional de saúde responsável pelo acompanhamento da gestação, do parto ou do recém-nascido, inscrito no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) ou no respectivo conselho profissional. Quando a criança nasce em hospital, a DNV é emitida pela unidade e entregue aos pais.
Além de Debora, outras sete famílias de Paraty, que também optaram pelo parto domiciliar, assinaram uma carta aberta, que circula nas redes sociais, afirmando não conseguir registrar suas crianças, mesmo após procurarem diferentes órgãos, desde cartórios até Secretaria de Saúde, Conselho Tutelar, Defensoria Pública e Ministério Público. "Cada um de nós obteve destes órgãos informações diferentes, desconexas, que não fazem sentido", informam as famílias no texto.
Na página do Cremerj (Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro), há um decreto da Secretaria Estadual de Saúde do Rio, de 2011, informando que, para nascimentos ocorridos em casa com assistência prestada por profissional de saúde ou parteira tradicional, os dados da DNV devem ser encaminhados pelo responsável pelo parto à Secretaria Municipal de Saúde em até sete dias após o nascimento. Ali a mãe ou responsável pela criança recebe uma segunda via do documento, que deverá ser levado ao cartório de registro civil mais próximo do local para obter a certidão de nascimento.
O texto ainda esclarece que, mesmo nos nascimentos em casa que acontecerem sem assistência de um profissional de saúde, a DNV deverá ser emitida no momento em que a mãe procurar uma Unidade de Saúde Pública, acompanhada por duas testemunhas.
Sem poder viajar
Foi o que Debora fez. Dias após o parto, ela, que é natural da Argentina mas vive no Brasil há 8 anos, foi à Vigilância Epidemiológica de Paraty, que pertence à Secretaria Municipal de Saúde, com a parteira, duas testemunhas e sua família —incluindo os dois filhos mais velhos, de 3 e 2 anos—, para conseguir a DNV e assim encaminhar o registro da filha. Não conseguiu.
"Falaram que eu não tinha como registrar o nascimento porque a minha parteira não estava autorizada a atuar e pediram meu endereço para que conselheiros tutelares me procurassem para verificar minha história", diz Debora, que fez todo o pré-natal na rede pública.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) reconhece como profissionais habilitados para prestar assistência ao parto tanto médicos como enfermeiras obstétricas e parteiras.
Mesmo com a quarentena e em resguardo, ela ainda voltou ao local, porque os conselheiros tutelares não apareceram. Obteve a mesma resposta. Somente depois dessa segunda ida ao local, ela conseguiu atendimento com um conselheiro tutelar, que lhe deu um protocolo autorizando o registro da criança, e o levou ao único cartório que existe na cidade. Mas, lá, lhe negaram a certidão. A informação era a de que estavam esperando uma resolução da Justiça, já que havia casos parecidos com o dela.
"Logo após o parto, pensei em ir embora para Santa Fé, que é a minha cidade, na Argentina, para esperar acabar a pandemia no Brasil. Mas agora não posso viajar porque minha filha não tem documento. Isso me leva a uma situação de estresse, num momento de resguardo, em que deveria estar tranquila", diz.
Ana Paula Caldeira, diretora da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado do Rio explica que o cartório de Paraty abriu um procedimento chamado suscitação de dúvida quando recebeu os primeiros casos, em março. Esse procedimento acontece quando há dúvidas sobre a documentação apresentada. Ela é enviada ao juiz da comarca para saber como proceder naquele caso.
Ela defende ainda que o cartório de Paraty tomou a decisão correta de não fazer a certidão, uma vez que não lhe foi apresentada a DNV devidamente preenchida por órgão de saúde.
"Cartório não se recusa a fazer a certidão, mas é papel da Secretaria de Saúde emitir a DNV, já que se trata de um ato médico, não apenas pegar papel e inserir algumas letras", afirma.
A doula Camilla Rodrigues acompanhou alguns partos dessas mulheres. Segundo ela, que atua no ramo há um ano, em Paraty, "sempre houve uma canseira para registrar crianças nascidas por parteiras". Na sua avaliação, a atitude prova um não reconhecimento da atividade por parte das instituições de saúde.
"Por que ela vai fazer parto em casa?"
Em 18 de junho, quando seu filho nasceu, a fotógrafa Joyce Ribeiro, 33, foi assistida por uma enfermeira obstétrica com dez anos de profissão, além de outras duas enfermeiras.
Antes mesmo do parto, a profissional que lhe atendeu, Karla Santos Pinto, coordenadora do serviço de apoio ao parto domiciliar Obstare, da região do Vale do Paraíba (SP), levou toda sua documentação à Secretaria da Vigilância Epidemiológica do município de Paraty, inclusive com o pré-natal da paciente, para fazer o cadastro completo de seus dados, informando que atuaria ali. Depois que a criança nasceu, voltou ao local com os dados da criança para fazer a DNV. Mas não foi bem recebida. Ela narra:
"Disseram que não poderíamos fazer o parto. Primeiro, porque somos de outra cidade, e Paraty estava proibindo turista devido à quarentena. E tive que explicar que parto não é turismo. Depois, perguntaram por que a mãe ia ter filho em casa, pois seria perigoso. Por último, disseram que não nos autorizariam a fazer parto domiciliar. Temos especialização e experiência. Não somos aventureiras, mas há esse preconceito ainda com o parto domiciliar".
A Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia (Figo), ratificando a OMS, recomenda que a mulher deve parir onde se sentir segura e onde a assistência adequada for viável e segura.
O parto aconteceu como planejado, mas Joyce está sem a DNV do filho até hoje, mais de um mês após o nascimento.
"Só consegui fazer o teste do pezinho e dar as vacinas necessárias por conhecer profissionais da saúde da região", diz.
O que a prefeitura diz
Em nota enviada a Universa, a Prefeitura de Paraty informa não se opor ao parto domiciliar, uma vez que esta prática é permitida por lei. Mas ressalta, no entanto, "que Paraty tem hoje uma maternidade e um serviço de obstetrícia qualificados, dentro do Hospital Municipal Hugo Miranda, e tem a quarta menor taxa de mortalidade infantil entre os 92 municípios do Estado, com taxa de 1,6 mortes por mil nascimentos (dados do IBGE, 2017)".
O texto informa ainda que a prefeitura segue orientação do Ministério Público, com base no §4º do artigo 731-D, da Consolidação Normativa da Corregedoria Geral de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que diz que "o registro de nascimento de criança de menos de três anos, nascida de parto sem assistência de profissional da saúde ou parteira tradicional, deve ser feito diretamente pelo oficial de Registro Civil. A mesma orientação do MP, por intermédio da Assessoria de Direitos Humanos e Minorias, aponta que não cabe aos órgãos de Saúde, nestes casos, a emissão da DNV." E fala que, por isso, a Vigilância Epidemiológica está impedida legalmente de emitir o documento.
Mas na Lei Federal, de 2012, no entanto, está escrito: "Nos nascimentos frutos de partos sem assistência de profissionais da saúde ou parteiras tradicionais, a Declaração de Nascido Vivo será emitida pelos Oficiais de Registro Civil que lavrarem o registro de nascimento, sempre que haja demanda das Secretarias Estaduais ou Municipais de Saúde para que realizem tais emissões." Fora que o decreto da Secretaria Estadual de Saúde, citado no início da reportagem, também segue outra interpretação.
E segue a nota:
"Com o objetivo de solucionar a questão, a Secretaria Municipal de Saúde e a Coordenadoria Municipal da Mulher acionaram o Cartório de Registro Civil para que a documentação fosse emitida diretamente pelo Oficial de Registro Civil. A Coordenadoria Municipal da Mulher tentou ainda agendar uma reunião com o cartório para tratar do assunto, mas o pedido foi negado.
Conforme reiterado no comunicado oficial e documentação anexada pela Prefeitura, o Cartório de Registro Civil informou estar aguardando um posicionamento da juíza da Comarca sobre como proceder.
O cartório é um órgão auxiliar do Poder Judiciário e a prefeitura (Poder Executivo) não pode lhe impor, legalmente, nenhum procedimento. Do mesmo modo, a Prefeitura não pode responder pelas dúvidas do cartório.
Preocupada em buscar uma solução para a questão, a Coordenadoria Municipal da Mulher acionou também a Vara da Infância e Juventude da Comarca de Paraty e aguarda um posicionamento do órgão.
Quanto à reunião com as mães, a Secretaria de Saúde informa que o encontro foi importante para esclarecer sobre a legislação que estabelece que o registro de nascidos vivos, nestes casos, deve ser feito diretamente no Cartório de Registro Civil. A Secretaria Municipal de Saúde também se reuniu com doulas com atuação em Paraty, orientando-as a se cadastrar na secretaria e sobre como proceder em relação à DNV e ao registro em cartório.
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