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Filha de Carolina de Jesus sobre a mãe: "Ela era culta até para dar bronca"

A escritora Carolina Maria de Jesus - Norberto/Acervo Ultima Hora/Folha Imagem
A escritora Carolina Maria de Jesus Imagem: Norberto/Acervo Ultima Hora/Folha Imagem

Camila Brandalise

De Universa

05/08/2020 04h00

A professora Vera Eunice de Jesus, 67, é filha de um dos maiores nomes da literatura brasileira, Carolina Maria de Jesus [1914-1977], autora de "Quarto de Despejo: Diário de Uma Favelada". O livro, de 1960, que vendeu mais de 1 milhão de cópias, foi traduzido para 13 línguas e publicado em mais de 40 países. Na obra, Carolina descreve sua vida na favela em formato de diário. Fala da fome, da miséria e do esforço para manter a si e a seus três filhos, entre eles Vera, vivos.

No dia 17 de julho, a editora Companhia das Letras anunciou a criação de um conselho editorial, do qual Vera faz parte, para organizar uma série de lançamentos de obras de Carolina, com reedições de livros já publicados e material inédito. No total, são 27 obras, segundo Vera, entre romances, poesias, peças de teatro e contos. Ainda não há datas para os lançamentos. Na organização está também a escritora Conceição Evaristo.

Essa é a realização de um desejo da mãe, que, ao morrer, em 1977, em São Paulo, deixou à filha uma carta com alguns pedidos. "Ela queria que eu propagasse sua obra, não deixasse que seu nome fosse esquecido", diz Vera em entrevista a Universa. Ela diz estar "aflita" para que todo mundo veja a grandiosidade de Carolina, para além de "Quarto de Despejo". "As pessoas vão se apaixonar."

Verá está refazendo os passos da vida da mãe para recuperar manuscritos espalhados pelo país. Há originais de Carolina na prefeitura de sua cidade natal, Sacramento (MG), e até material com admiradores. Um deles, de Curitiba, procurou Vera para dizer que tinha o original do conto "O Escravo", ainda não publicado.

Vera Eunice de Jesus - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A professora Vera Eunice de Jesus organiza o lançamento de obras inéditas da mãe
Imagem: Arquivo pessoal


"Quarto de Despejo", 60 anos depois

Obra de Carolina com maior reconhecimento, "Quarto de Despejo" é um livro de uma objetividade cortante, direto e realista. Também é atual, mesmo 60 anos depois de ser lançado. Professora do ensino infantil na Vila Rubi, bairro no extremo sul de São Paulo, Vera diz que, de lá para cá, "pouca coisa mudou".

"Meus alunos chegam com fome. Exatamente como eu chegava na escola quando era criança. São minha cópia. Por mais que tenha Bolsa Família, pouca coisa mudou. Eu tenho andado pelas favelas, mesmo sendo grupo de risco na pandemia, para doar cestas básicas. É uma ação que tenho feito com outras professoras da escola em que trabalho. As mães pegam as doações de comida chorando", conta.

O racismo, porém, é mais evidente. "Olha o tanto de crianças que a gente vê sendo mortas nas favelas" diz. "Mas, por outro lado, os negros estão mais presentes nessas questões, mais espertos. Hoje, o negro grita quando vê a injustiça sendo cometida."

Sobre a reedição do livro, Vera fala que há, no mínimo, "uns cinco 'Quartos de Despejo'" a mais do que o que foi lançado em 1977 e editado pelo jornalista Audálio Dantas [1929-2018], que cortou diversas partes dos escritos de Carolina. Dantas, inclusive, foi a pessoa que impulsionou a carreira literária de Carolina, ao ajudá-la a publicar o livro após conhecê-la durante uma reportagem na favela do Canindé, que não existe mais.

O material original, segundo Vera, foi doado pelo jornalista à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro. "Fica em uma seção chamada 'Obras raras', ao lado da primeira edição de 'Os Lusíadas'", diz Vera, referindo-se ao livro escrito por Luís de Camões e publicado em 1572.


"Ela era culta até para dar bronca"

Vera lembra que, quando iniciou o processo de alfabetização na escola, já sabia ler. "Por causa da minha mãe. A gente conversava muito. Não tínhamos comida, não sabíamos quando íamos ter, então era muita conversa, ela tocava violão, dançava, para tentar entreter a gente", diz.

A habilidade da mãe com as palavras é uma das lembranças da infância de Vera. "Ela falava muito bem. Até nossa criação era diferente. Ela nos xingava com termos que nem conhecíamos. Lembro uma vez que nos chamou de 'soezes' [vulgares, ordinários]. Eu nem entendia o que ela falava", conta e dá risada.

Lembra também, com orgulho, do gosto da mãe pela escrita e da noção que ela tinha do próprio potencial. "Ela não parava de escrever, escrevia o dia inteiro. Quando ela me levava para catar papel com ela, lembro que levava um lápis e que corria para buscar um pedaço de papel quando um poema vinha na cabeça. Cansei de vê-la escrevendo em papel de pão."

"Ela estudou só um ano e meio na escola. Ou 'grupo escolar', como falava. Mas lia tudo que via. Em Sacramento, chamavam ela de negrinha antipática porque era uma menina viva, esperta, fazia perguntas que outras crianças não faziam. Em 1940, já tinha seus cadernos de poesia e chegou a procurar editoras para publicá-los, mas nenhuma teve interesse."

"Sabia que sua mãe bebia?"

As memórias de Vera, ela conta, têm sido revisitadas nos últimos tempos por seu desejo de reconstruir a trajetória da mãe e escrever uma biografia sobre ela. "Há algumas já, mas não gosto delas. Contam muitas coisas que não são verdade. Uma vez fui em uma palestra sobre Carolina e um palestrante me disse: 'Sabia que sua mãe bebia?'. Eu disse que não. A única coisa que ela bebia era Caracu com ovo e Biotônico Fontoura. Vou fazer essa biografia porque não posso deixar que falem o que quiserem dela", diz.

E não só para continuar cumprindo o pedido da mãe para que não deixasse seu nome ser esquecido. Levar Carolina consigo, para Vera, é ajudar outras pessoas a reconhecerem sua própria força. "Carolina é a força dos negros. Ela é a força da mulher negra, que não é passiva, sem cultura. O que ela era lá atrás, vejo muitas meninas, hoje, nas palestras que dou em escolas, querendo ser também."