Mulher do diabo: há 110 anos, ela criou 1º partido feminino do Brasil
Mulher do diabo, louca de hospício e anticristo foram apenas alguns dos apelidos dados a Leolinda de Figueiredo Daltro no início do século 20. Professora, sufragista, indigenista e feminista, Leolinda (1859-1935) foi a fundadora, há 110 anos, do Partido Republicano Feminino, o primeiro destinado a mulheres em uma época em que ainda era negado o direito de voto a elas, que só viria em 1932. E sua forte atuação social despertava tanto admiração quanto ódio.
Leolinda figurava com frequência na imprensa brasileira, ora por sua militância em favor do voto feminino, criando grupos e organizações, como o PRF, ora por seu trabalho como professora e indigenista, na defesa de uma educação para povos indígenas que não envolvesse religião e em oposição a todo o trabalho catequizador que era feito no período.
Desquitada e mãe de cinco filhos, despertou a ira de políticos e colegas de magistério, que não aceitavam que ela ousasse transpor o limite dado às mulheres na época e começasse a exigir um espaço na política, entre os homens.
Para a historiadora e pesquisadora Mônica Karawejczyk, autora de "As Filhas de Eva Querem Votar: Uma História da Conquista do Sufrágio Feminino no Brasil" (Edipucrs), lançado em março deste ano, o traço mais marcante de Leolinda foi justamente sua "coragem de se posicionar". "Ela fez a sua voz ser ouvida na esfera pública, uma 'voz de trovão' como a imprensa a descrevia às vezes, e que não foi calada apesar das mais variadas tentativas feitas por meio de piadas e desacatos para desacreditar o que ela e suas companheiras estavam reivindicando", afirma Mônica.
Partido foi criado quando mulher não era vista como cidadã
Em 1909, Leolinda tentou fazer sua inscrição eleitoral para que pudesse votar. Ela se valeu de uma brecha na Constituição de 1891 que não dizia, explicitamente, que mulheres não tinham direito ao voto. Mas não teve sucesso.
O voto estava garantido, na Constituição de 1891, aos cidadãos brasileiros com mais de 21 anos. Mas o termo "cidadão", como explica Céli Regina Jardim Pinto no livro "Uma História do Feminismo no Brasil", não era usado de maneira universal, referindo-se a pessoas de ambos os gêneros, mas apenas aos homens. "A mulher não foi citada porque ela simplesmente não existia na cabeça dos constituintes como um indivíduo dotado de direitos", escreve Céli.
Um ano depois, em 1910, Leolinda criou o Partido Republicano Feminino como uma maneira de pressionar os parlamentares e a opinião pública para que a lei fosse alterada, garantido a participação feminina nas eleições. Cerca de 90 mulheres faziam parte da sigla que, apesar de reconhecida no Diário Oficial da União, não poderia concorrer. Assim como o voto, o direito de se candidatar só veio com o Código Eleitoral de 1932, pois para ser candidato era preciso ser eleitor.
A pesquisadora Mônica Karawejczyk afirma em seu livro que a criação do partido não foi bem vista socialmente, e Leolinda ficou estigmatizada como representante de um feminismo considerado "pernicioso" por estimular outras mulheres a participarem da política.
"Enquanto o homem público é reconhecido como tendo um valor positivo para a sociedade, a mulher é obrigada a se comportar de forma exemplar para não receber a alcunha de mulher pública e, portanto, sem valor, correndo o risco de ser ridicularizada e ser mal vista pela sociedade, podendo até ser excluída de seu convívio", escreve Mônica.
Escola feminista e passeatas a favor das mulheres
Se hoje é comum ver mobilizações e protestos organizados por mulheres nas ruas, há um século esse tipo de manifestação era considerado uma afronta aos bons costumes da época. E Leolinda se aproveitava disso para garantir que sua voz, assim como das outras integrantes do partido, fosse ouvida.
No mesmo ano da criação do PRF, ela fundou também a Escola Orsina da Fonseca, apenas para mulheres e no mesmo lugar que servia como sede do partido. O nome é uma homenagem a mulher do então presidente Hermes da Fonseca (1855-1923), amiga e aliada de Leolinda. "Orsina foi, inclusive, uma das presidentes de honra do partido, o que já demonstra o apoio que as associadas do PRF obtiveram nos meandros do poder", explica Mônica. "Mesmo assim, elas não conseguiram avançar muito."
Entre as atividades do partido, que envolvia também alunas da escola, estavam as passeatas de mulheres pelas ruas do Rio de Janeiro exigindo a legalização do voto feminino. Elas empunhavam estandartes e usavam broches presos em seus longos vestidos.
Por dez anos, o nome de Leolinda esteve em pauta na imprensa brasileira. Mas, a partir dos anos 1920, a bióloga Bertha Lutz passou a ser considerada o grande nome do sufragismo brasileiro, à frente da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, e Leolinda caiu no esquecimento.
Em 1934, concorreu a uma vaga no Parlamento, mas não foi eleita. Conseguiu, porém, votar. Morreu um ano depois, aos 75, vítima de um atropelamento.
Uma das poucas iniciativas que mantém seu nome vivo é "Diploma Mulher Cidadã Leolinda de Figueiredo Daltro", da da Alerj (Assembleia Estadual do Rio de Janeiro), uma homenagem a mulheres que contribuem com a luta pelos direitos femininos. Para Mônica, o grande legado da ativista foi justamente sua luta em prol da conquista desses direitos. Sua história mostra, também, que a presença de mulheres na política ainda é tida de maneira muito similar à da época em que Leolinda era atuante na causa.
"O que permanece de forma quase idêntica tanto agora como lá no início do século 20 é a dificuldade de se perceber a voz feminina como legítima na esfera pública, como uma voz que fala em nome de todos, homens e mulheres", diz Mônica. "Não se reconhece a autoridade feminina nos espaços de poder. Sejam elas de qual vertente forem, sempre têm que se justificar do porquê de estarem presentes no espaço público. Uma esfera de atuação na qual, até hoje, não são vistas com naturalidade."
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