Apertadas e sem banda larga: como moradoras de ocupação estudam para o Enem
No começo de maio, o Ministério da Educação publicou uma peça publicitária em que três adolescentes dizem que "a vida não pode parar" com a pandemia do novo coronavírus para divulgar a abertura do período de inscrições para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O vídeo defendia que os jovens devem "encontrar um jeito" para estudar mesmo neste cenário de isolamento social e recebeu muitas críticas nas redes sociais.
A realidade do país está bem distante dos quartos bem equipados, cadeiras ergométricas e computadores avançados apresentados na propaganda. É possível, aliás, que boa parte dos candidatos nem sequer tenha assistido ao vídeo. Dos pouco mais de 5 milhões de inscritos para a edição de 2019 do Enem, 77,6% não tinham acesso à internet e 46% dos participantes do exame sequer tinham computador em casa.
Enquanto alguns estudantes pagam milhares de reais em cursos preparatórios e materiais, outros precisam se preocupar até com a moradia. É o caso de candidatos que vivem em ocupações, onde precisam conciliar os estudos com dificuldades, que vão desde a falta de internet a espaços apertados, passando pela intolerância e discriminação.
"Todo mundo que mora em ocupação já sofreu preconceito pelo menos uma vez na vida", diz Vitória Aparecida. A jovem, de 18 anos, mora com a mãe e quatro irmãos em um pequeno apartamento da Ocupação Ipiranga, no centro de São Paulo. Ela é uma das 5,7 milhões de pessoas inscritas no exame, que foi adiado e tem aplicação prevista para janeiro e fevereiro de 2021.
Tempo dividido entre estudos e cuidados com casa e irmãos
Pouco antes da pandemia, ela foi contratada para trabalhar como vendedora em uma loja, mas perdeu o emprego por conta da quarentena. Teoricamente, teria mais tempo para estudar, mas isso não ocorre na prática. A perda do trabalho coincidiu com a paralisação das escolas públicas e particulares em todo o Brasil. Desta forma, a jovem, que já se formou no ensino médio, precisa cuidar dos irmãos pequenos que, agora, passam o dia em casa.
A mãe e a irmã mais velha que vivem com ela continuam trabalhando, então a jovem passou a conciliar os cuidados domésticos e a atenção aos irmãos com os estudos. Vitória diz que, por causa do tamanho do apartamento, é muito difícil se concentrar nas atividades e criar uma rotina com as crianças em casa. "O barulho e o espaço atrapalham muito", diz. Além disso, a jovem não tem internet banda larga em casa.
O plano de dados de 1GB contratado para o celular precisa durar 14 dias para, enfim, ser renovado novamente. "A nossa comida, as contas mensais, produtos de higiene e as coisas que as crianças precisam são muito mais importantes que um plano de internet", justifica Vitória. Apesar de receber o auxílio-emergencial, a jovem, que está em vias de fazer uma das provas mais importantes da sua vida, também está em busca de um trabalho, para voltar a ajudar em casa.
Filha de uma cozinheira, Vitória sonha em fazer faculdade de nutrição. "Quero evoluir, crescer e me formar para ajudar minha família e conseguir ter uma condição de vida melhor", diz a jovem.
Falta de apoio
A jornada de Vitória não deve ser fácil. É sabido que quanto melhor a condição socioeconômica do estudante, maior sua nota tende a ser no Enem. Tanto é que 1 a cada 4 alunos de classe média alcança uma pontuação entre as 5% melhores notas, ao passo que os pobres que atingem esse resultado são 1 a cada 600. Essa disparidade, porém, parece não estar perto de chegar ao fim.
"Tem muitos jovens aqui na ocupação, mas é bem raro você encontrar algum que queira fazer faculdade", diz Antônia, moradora da Vila Nova Palestina, localizada no extremo sul da cidade de São Paulo. "Acredito que falta suporte e influência para a gente saber que é possível chegar ao ensino superior morando em uma ocupação", afirma a jovem de 17 anos que pediu para que seu nome não fosse revelado por causa do preconceito com pessoas que vivem nessas condições.
Antônia é bolsista em uma escola particular. Ela mora, há quatro anos, com a mãe e dois irmãos -um deles recém-nascido- no local. A residência de três cômodos tem uma sala, uma lavanderia e a cozinha, onde ela posiciona um computador na mesa de refeições para estudar. "É um barraco, então tem bastante barulho e é muito difícil se concentrar nessas condições. Qualquer coisa acaba me distraindo", diz.
Antes da quarentena, ela precisava conciliar o último ano do ensino médio com o trabalho como atendente de telemarketing. "Eu saía quase uma hora e meia antes do final da aula porque tinha que ir trabalhar", relata. Com a chegada do coronavírus, entretanto, a jovem perdeu o emprego e se viu forçada a ficar em casa, onde não tem internet de banda larga e depende do plano de internet móvel de 8 gigas por mês, agora custeado pela mãe.
Apesar das dificuldades, entretanto, Antônia não se deixa abater. Continua estudando incessantemente para tirar uma nota boa no Enem. Deseja cursar psicologia na universidade e sonha em trabalhar com educação infantil depois de formada. "Sempre me virei. Se preciso, pego o celular de alguém emprestado e peço ajuda. Não é porque moro numa ocupação que sou incapaz."
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