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Em 76% dos casos, abuso de vulnerável é cometido por parente ou conhecido

Estupro de vulnerável é cometido, na maioria das vezes, por conhecidos da criança - iStock
Estupro de vulnerável é cometido, na maioria das vezes, por conhecidos da criança Imagem: iStock

Luiza Souto

De Universa

18/08/2020 16h25

A história da menina abusada sexualmente pelo próprio tio desde os seis anos e que culminou na interrupção de uma gravidez aos dez está longe de ser um caso isolado. Em 76% dos casos de estupro de vulnerável (relação sexual entre um adulto e uma criança ou adolescente com menos de 14 anos), o agressor é um parente ou amigo próximo à família da vítima e o abuso acontece em ambiente familiar.

Os dados nacionais sobre estupro, de 2018, fazem parte da última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado ano passado. Naquele ano, o Brasil registrou 66.041 casos de violência sexual. Desse total, 81,8% das vítimas foram mulheres e 53,8% tinham até 13 anos. Ou seja: quatro meninas de até 13 anos foram estupradas por hora no país.

Ainda segundo a pesquisa, o principal grupo de vítimas de estupro são meninas muito jovens: 26,8% tinham no máximo nove anos. As pessoas negras correspondem a 50,9% das vítimas e as brancas a 48,5%.

Do total de casos de estupro de vulnerável, 75,9% das vítimas possuem algum tipo de vínculo com o agressor, entre parentes e amigos da família. E, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, esses dados não são novos: pelo menos desde os anos 1990, diferentes estudos têm indicado que o abuso sexual em geral é praticado por membros da família ou que seriam de confiança das crianças.

Esses números podem ser ainda maiores, devido à dificuldade de a criança ou adolescente reconhecer e denunciar a violência de que ela está sendo vítima. Segundo Juliana Martins, coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo Anuário, os crimes sexuais, de maneira geral, são os de menor notificação. E, quando se trata de estupro de vulnerável, a dificuldade aumenta, já que o abusador tem, em geral, a confiança de sua vítima.

"Se nenhum outro adulto intervém, a vítima fica desamparada e confusa, porque ela tem essa pessoa como referência. E, muitas vezes, elas acham que aquilo que eles fazem é amor, carinho", diz Juliana.

Possível aumento de estupro durante a pandemia

A pandemia provocada pelo novo coronavírus pode ter contribuído ainda para o aumento dos casos de violência contra a mulher, entre eles os de estupro de vulnerável. Com as vítimas confinadas em casa com seus agressores e com mais dificuldade no acesso às redes de proteção e aos canais de denúncia, a tendência é que os crimes tenham aumentado, apesar de os registros terem diminuído.

Segundo levantamento do FBSP divulgado em julho, houve uma redução de 50,5% nos registros de estupro e estupro de vulnerável no período acumulado entre março e maio de 2020, em relação ao mesmo período de 2019. Não há, nessa pesquisa, uma separação de vítimas por idade.

"Falar sobre esse tipo de crime, se expor, pedir ajuda, é muito difícil. Por isso, são casos subnotificados. Esses números que o Fórum traz mostram um cenário que pode ser muito mais desolador", afirma a coordenadora do FBSP.

"Podemos imaginar que esse tipo de crime aumentou já que a casa é o local onde a violência acontece", diz Juliana. Além disso, ela aponta, o fato de a criança estar longe da escola como dificuldade no combate a esse tipo de crime. "A escola é um ator importante na hora de identificar essa violência, porque o professor pode notar uma mudança brusca de comportamento dessa criança."

Crime atinge a todas as classes sociais

A pesquisa do Fórum não diferencia as vítimas por classe social. Mas outros levantamentos, como o da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, apontam que a maioria das vítimas de estupro de vulnerável vive em bairros com menor de Índice de Desenvolvimento Humano.

"A gente identificou que é um crime que atinge todas as classes", diz Juliana.

Numa análise empírica, a delegada Débora Rodrigues, da Delegacia de Atendimento à Mulher no centro do Rio de Janeiro, observa que as famílias de camadas mais pobres da sociedade denunciam mais a violência como forma de pedir ajuda ao Estado.

"Nas classes mais altas, a vergonha de se expor faz com que várias crianças sejam violentadas diariamente", avalia.

Numa entrevista recente a Universa, a coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, Flávia Brasil Barbosa do Nascimento, lembrou que os dados do Dossiê Mulher, com base nos registros de ocorrência da Polícia Civil, apontam que as violências consideradas menos graves, como ameaça, são mais registradas por mulheres brancas, e as violências mais graves, como estupros e feminicídio, incidem mais sobre mulheres negras e pobres.

"A gente interpreta isso da seguinte forma: provavelmente a mulher mais escolarizada, mais informada, vai acessar a sua proteção mais rapidamente do que aquelas mulheres que têm dificuldade de chegar aos serviços básicos. A vítima que mora numa região precarizada só vai aparecer na estatística", diz Flávia.