Dayana Molina, a estilista indígena que quer descolonizar a moda no Brasil
Foram reflexões durante uma travessia de barca de Niterói para o Rio que fez nascer uma ideia para preencher uma lacuna para a estilista, produtora de moda e diretora criativa Dayana Molina, 32. Ela estava a caminho de um evento de literatura com dois amigos, a escritora Julie Dorrico e o artista visual Denilson Daniwa, quando o trio resolveu criar a Oka, a primeira revista indígena do Brasil. Na edição de lançamento, em abril de 2020, a atriz Eunice Baía estampou a capa.
"Começamos a conversar sobre criar algo com uma linguagem jovial, contemporânea, mas que tivesse a ver com a nossa cultura. Foi assim que surgiu a ideia", relembra a estilista, que faz parte de uma geração de indígenas nascidos e criados em um contexto urbano.
Dayana já vestiu grandes atores e atrizes, faz trabalhos para revistas conceituadas no Brasil e no exterior, e é dona de sua própria marca de roupas. "Não vejo a moda hoje tão diferente de quando, nos anos 90, eu era uma adolescente que olhava para as revistas e não me enxergava. E hoje eu não mudaria nada em mim, eu mudaria as capas", diz.
Nascida e criada na cidade de Niterói (RJ), Dayana é uma mulher de estilo minimalista, moderno e urbano. Conhece e tem orgulho de suas origens graças à sua avó Naná, 86, originária do povo fulni-ô, no sertão do estado de Pernambuco. Sua avó nasceu e cresceu na aldeia, mas foi retirada do convívio familiar ainda criança por fazendeiros que e a levaram para trabalhar. Em uma de suas tentativas de fuga, chegou ao Rio de Janeiro e ficou.
"Minha família é constituída a partir de uma violência, de um sequestro. Minha avó é um símbolo de luta, resistência e força. Conseguiu sobreviver na cidade consciente da sua natureza como mulher indígena", reflete a estilista. Naná criou as netas com rezas, benzas, rituais de nascimento, uma relação forte com a natureza e o idioma yathê, que hoje Dayana está tentando aprender. "Eu perguntava: 'vó, por que você está falando errado'? A gente brincava e tentava corrigi-la, mas ela que estava certa", conta.
Não ver seus pares nos espaços por onde circula é uma solidão que a acompanha desde a infância. Cresceu sendo a única criança indígena na escola. "Tive uma professora que falava que eu era exótica. E que teria que estudar muito pra me destacar porque beleza eu não tinha. Hoje entendo que era racismo, mas cresci acreditando nisso".
Foi aos 16 anos, vendo seus traços refletidos na irmã, que a estilista se reconciliou com sua aparência e passou a se achar bonita, mesmo sem se reconhecer nas capas de revista e tutoriais de maquiagem. "Via beleza naqueles traços da minha irmã que não eram os normativos. E assim fui me reconciliando comigo", conta.
Herdou da bizavó o talento para a costura
E foi a partir dessa reconciliação e consciência sobre suas origens que surgiu o desejo de falar sobre temas sociais. Achava a moda um ambiente fútil, excludente e elitista, e foi estudar Ciências Sociais. Mas, falou mais alto o talento herdado da bisavó - que costurava muito bem e fazia trabalhos manuais. Nessa época, ela já tinha uma relação de afeto com suas vestimentas: reciclava as roupas da avó, fazia suas próprias saias e customizava os tênis. Até que ficou sem dinheiro e aceitou fazer um bico em um ateliê.
Passou a se interessar por figurino e ganhou uma bolsa para estudar na Argentina com o fotógrafo de moda Aldo Bressi. Não teve dúvidas. "Andava muito para não pagar o metrô, fiquei super magra essa época. Comecei a trabalhar, conheci muita gente, fui fazendo meu networking. Fui com dinheiro para passar um mês, acabei ficando quase um ano. Voltei para o Brasil mais segura do que eu queria e com um portfólio legal", diz.
Desde então, doze anos se passaram e Dayana vem se destacando no mundo da moda como produtora e stylist. Construiu uma carreira mais estável, mas viu crescer o incômodo de circular pelos bastidores de uma produção ou desfile sem ver nenhuma pessoa indígena, seja na frente das lentes ou nos bastidores.
Nunca me senti feliz por ser a única mulher indígena nesses espaços. Muitos nunca me perceberam assim, preferiram me olhar como mestiça. Ou uma mulher morena bonita, mas não uma mulher indígena
Dessa inquietação nasceu uma militância ambiciosa e urgente: descolonizar o mundo da moda e inserir a pauta dos povos originários do Brasil na luta antirracista. "Queria abrir a boca para falar só do meu trabalho, mas preciso falar de luta", pondera a estilista, que hoje se define como "artivista". Sua principal bandeira são as causas coletivas dos povos indígenas: "É uma forma de aquecer meu coração e mantê-lo batendo e conectado com a cultura do meu povo".
Ela cria peças para durar para sempre
Parte deste ativismo se expressa em sua marca de roupas, criada há quatro anos e definida como algo mais autoral do que comercial. As peças são feitas para durar para sempre, assim como as roupas do armário de sua avó, dentro de uma ideia mais minimalista de consumo na moda.
Há peças com preços semelhantes aos de uma loja de departamentos e outras mais elaboradas, com tecidos mais nobres. O estilo é contemporâneo, moderno, monocromático e urbano. "Quis criar algo totalmente diferente do estereótipo que se imagina para mim. Nunca fiz apologia ao consumo, ao look do dia, e sempre critiquei questões problemáticas dentro da indústria da moda. Quis trazer pessoas consideradas atípicas, o povo preto, o povo indígena, pessoas LGBTQ+. E nem coloco isso como uma questão", afirma Dayana.
A dificuldade para encontrar modelos que expressem a beleza dos povos originários do Brasil, no entanto, ainda é grande.
"Quando posso decidir, nos meus trabalhos sempre opto por pessoas indígenas. Mas há uma bolha cheia de privilégios que não é facilmente furada. Se uma menina aldeada quiser trabalhar com moda hoje, o desafio será enorme. Quando se decide ser modelo, para ganhar ascensão, precisa ter visibilidade, ser agenciado, estar nos castings. E onde existem agentes de modelos indígenas? Só conheço uma, e isso porque eu fui lá e militei", conta.
Estabelecer pontes com o povo indígena
Parte fundamental dessa militância é usar de sua visibilidade para conectar, abrir caminhos e estabelecer pontes entre coletivos e pessoas indígenas. As redes sociais têm sido importantes nessa missão. Dayana usa as redes para falar da luta antirracista e sobre pautas urgentes, como os ataques do atual governo à demarcação de terras indígenas e o avanço do Covid-19 nas aldeias brasileiras.
"É um momento de luto pra gente. Vários ancestrais estão morrendo com a pandemia. Perder um ancião é como perder uma biblioteca, com eles se vão muitas histórias, muitas memórias" lamenta.
Dayana faz parte de uma geração que nasceu e cresceu em um ambiente urbano e que ainda segue invisibilizada no imaginário popular, para quem o indígena muitas vezes é apenas aquele que vive na aldeia. Uma geração que vem fazendo barulho e ganhando protagonismo, como seus amigos com quem criou a Revista Oka. "Há uma relação equivocada sobre o indígena: uma relação de tutela do que pode e não pode fazer. Me pergunto quem são essas pessoas para dizer o que podemos fazer", diz.
A próxima edição da revista digital ainda não está disponível. Por conta da pandemia o trio teve que dar um tempo na produção. Enquanto isso, Dayana sonha com um Brasil menos desigual, mais representativo. E com uma moda inclusiva e sustentável. "Se tivesse poder aquisitivo, criaria uma escola de moda descolonial. Um lugar para valorizar os povos tradicionais do Brasil", sonha.
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