Mulheres de origem libanesa se mobilizam pela reconstrução de Beirute
"Eu havia saído para arrumar meu cabelo, no dia da grande explosão em Beirute, quando o celular tocou. Era uma repórter me pedindo contatos na cidade para escrever sobre o que tinha acontecido. Quando ouvi do que de fato se tratava, não aguentei, comecei a chorar."
O depoimento da presidente da Associação Cultural Brasil-Líbano, Lody Brais, se refere à explosão que devastou grande parte da capital libanesa, no último dia 4, e deixou mais de 170 mortos, 6.500 feridos e ao menos 300 mil desabrigados.
Integrante engajada da comunidade libanesa em São Paulo, onde vive desde os cinco anos, Lody expressa, na fala, um símbolo de como as libanesas e as descendentes de nativos libaneses que vivem no Brasil encaram a atuação feminina nas reconstruções que vêm marcando, ao longo das últimas décadas, a história de um país que viveu diversas guerras: uma participação ativa, coletiva e mobilizadora.
"Vejo as imagens de Beirute, e milhares de pessoas estão ajudando a reconstruir a cidade, limpando, tendo atitudes que as autoridades de lá não estão tendo, ou estão, mas em ritmo muito lento. É todo mundo agindo. Mas principalmente elas, as mulheres", observa.
Em 2006, Lody auxiliou a arrecadar mantimentos para o Líbano depois de o país ser invadido, ao sul, por tropas israelenses. Premiada por seus serviços à comunidade libanesa no Brasil, ela atua com outros grupos de mulheres e entidades filantrópicas a arrecadar mantimentos a serem enviados a Beirute, especialmente às centenas de milhares de desabrigados.
"O Líbano já sobreviveu a muitas desgraças e a várias guerras. Não é nossa primeira reconstrução. Na guerra civil de 1975 [que se estendeu até 1990], por exemplo, a figura da mulher já foi fundamental ao ser alicerce da família e dar força aos maridos e filhos", diz a libanesa radicada no Brasil. Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), a guerra civil que opôs diferentes grupos político-religiosos e destruiu grande parte do Líbano deixou cerca de 120 mil mortos.
Mesmo na guerra, libaneses buscavam se distrair
É do começo da guerra civil, por sinal, uma das memórias que a presidente da associação mais gosta de evocar sobre a terra natal.
"Eu fui várias vezes a Beirute para passar férias, mas, em uma dessas ocasiões, bem no começo da guerra civil, estávamos em um local onde começou subitamente um tiroteio. Sem entender o que acontecia, começamos a nos esconder, em pânico", conta. "Mas eu nunca esqueço que, naqueles mesmos dias, nas montanhas próximas a Beirute, as discotecas e bares funcionavam normalmente à noite. Era aquilo: mesmo na guerra, as pessoas buscavam se distrair, ter alguma esperança de que a alegria voltaria."
Agora, com a nova destruição de parte de Beirute, a associação que a libanesa preside, juntamente com outras entidades, e com o apoio da Prefeitura de São Paulo, segue na arrecadação de mantimentos a serem destinados aos afetados pelo acidente. Uma missão brasileira, chefiada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB), entregou seis toneladas de material ao Exército local, incluindo alimentos, medicamentos e equipamentos de saúde arrecadados pela sociedade civil.
A campanha com a prefeitura paulistana tem como ponto principal de arrecadação a sede da Cruz Vermelha no Brasil, na zona sul de São Paulo (Avenida Moreira Guimarães, 699, Indianópolis).
Grupo de mulheres volta a se reunir após 14 anos
A invasão israelense ao território libanês, em 2006, já havia provocado outra onda de solidariedade no Brasil, país onde vivem hoje mais de 10 milhões de descendentes de libaneses, segundo estimativa da Câmara de Comércio Árabe-Brasileira.
Também naquele ano, entidades como a presidida por Lody e outros grupos liderados por mulheres se mobilizaram para arrecadar dinheiro e mantimentos a serem enviados às ações de reconstrução.
Um desses grupos foi o coordenado pela autônoma Paula Cotait, 45, de São Paulo, descendente de libaneses. Em quatro ou cinco dias, o grupo de 21 mulheres, filhas e netas de libaneses conseguiu levar cerca de mil pessoas às ruas da capital paulista em um ato de solidariedade à terra de seus familiares. Também juntaram doações de alimentos e recursos.
Com a destruição parcial e mais recente de Beirute, o grupo voltou a se reunir, depois de 14 anos, para um ato virtual de solidariedade e para recolher doações, uma semana após a explosão (em função da pandemia, um ato físico acabou descartado).
"Temos parentes e amigos no Líbano, e os dois países têm uma relação muito forte. Tanto que esse grupo de mulheres voltou a se reunir 14 anos depois porque precisávamos fazer alguma coisa", diz Paula. "A área destruída era uma das mais bonitas da cidade e já era fruto de reconstrução. Um familiar meu teve a casa bastante danificada mesmo estando a 15 km do local da explosão."
Machismo ainda é obstáculo
Lody diz que, embora destemida, a mulher libanesa ainda enfrenta um machismo cultural que precisam ser sanado. "O machismo é um problema na nossa cultura. Não podemos passar pano para isso, embora seja também algo a ser melhor trabalhado em culturas como a brasileira", diz. "Eu presido uma associação que faz e fez coisas grandiosas, e isso ainda causa algum incômodo."
Para a arquiteta Tânia Maalouf, 55, filha de pai e neta de avô libaneses, "a mulher libanesa é muito forte, agregadora, muito família, respeitada pelos filhos e pelo marido, mesmo o homem sendo o chefe na cultura libanesa". No entanto, ela diz que a respeitabilidade à figura feminina ainda está associada à figura de um homem ao lado dela.
"Quando eu fui para o Líbano, em 1992, passar seis meses com meu pai na casa de familiares nossos, eu era muito cobrada porque estava com 27 anos e ainda não tinha me casado. É como se a mulher casada tivesse uma respeitabilidade maior. Mesmo assim, meu pai não era machista na minha criação", conta ela que preferiu se manter solteira.
"Um dia eu estava na casa de umas tias, que se reuniam com amigas. Uma delas me olhou e disse: 'Vamos ver como Tânia faz café...'. Quando eu disse que não sabia como fazer, elas me pegaram pelo braço, me levaram à cozinha e me ensinaram. Eu acho isso até engraçado, bonito, mas penso, hoje, que as pessoas precisam ser respeitadas pela própria história e escolhas, sem julgamentos", diz.
Paula preferiu não comentar sobre eventuais obstáculos à mulher na cultura libanesa. "A libanesa nunca deixou de ser destemida, forte, de proteger quem ela ama, a ponto de abraçar a família, mas também o país dela. E acho que a gente vai, com pequenas ações, mostrando nossa capacidade e nosso poder, de tal modo que as libanesas e descendentes residentes no Brasil com certeza inspiram e fortalecem as nossas mulheres que estão lá também", acredita.
Explosão foi "pior que guerra"
Filha de libanês e também integrante do grupo de 21 mulheres, a publicitária Simone Pierre Ziade, 43, lembrou dos conflitos que fizeram amigos e familiares deixarem o Líbano nos anos recentes. Com a recente explosão, um de seus primos perdeu a casa em Beirute e ficou ferido. Uma tia, também com a casa destruída, ficou ferida com mais gravidade em função da quantidade de cristais que tinha no interior da residência.
"Uma prima da minha mãe, morando lá, disse que o que aconteceu agora foi pior que guerra. Por mais complicada que seja nossa situação, aqui no Brasil, com a covid-19, pelo menos temos alguma paz. É muito sofrimento naquela terra, eles não mereciam, são um povo muito amável, muito resiliente", diz Simone.
"Mas as mulheres da nossa cultura são muito determinadas, têm o gênio forte e, ao mesmo tempo, são vaidosas, rainhas, zelosas coma beleza exterior. Isso tem inspirado, há décadas, todas as reconstruções em Beirute. Agora não será diferente."
Por outro lado, a publicitária também acredita que o machismo é algo que ainda precisa ser superado na cultura árabe.
"Sempre houve a ideia de que o homem é que deveria sair de casa para trabalhar, sustentar a família. A mulher deveria ficar em casa e, dependendo da religião, ainda seria vista como uma empregada do marido. Isso é extremamente machista, tanto que minha mãe ficou completamente perdida depois que meu pai morreu, pois ele que trabalhava fora de casa."
Mulheres nas ruas do Líbano
A explosão do depósito onde estavam armazenadas irregularmente quase 3.000 toneladas de nitrato de amônio destruiu parte importante de Beirute em um momento de grave crise política e econômica no país.
Desde o ano passado, centenas de pessoas têm ido às ruas protestar por justiça social. A novidade havia sido justamente a participação das mulheres nas manifestações: a mais alta de todos os tempos no Líbano.
Ao jornal libanês Daily Star, Hanin Nasser, uma das participantes, justificou a necessidade de se preservar "o rosto pacífico" dos atos: "Nós, mulheres, somos como os soldados do movimento. Temos nossa força muito própria e mostramos isso".
A luta pela ocupação de espaços pelas mulheres, entretanto, vem de décadas anteriores: em 1953, por exemplo, foi fundado no país o Conselho das Mulheres Libanesas, cuja bandeira pelo direito feminino ao voto foi conquistada no mesmo ano. Já a causa dos direitos humanos passou a ser defendida pelas libanesas na guerra civil do país, que durou 15 anos.
Ativistas em maratona denunciam abusos sexuais
Em novembro de 2018, dezenas de libanesas participaram da maratona de Beirute para protestar contra estupros e abusos sexuais no país, onde, naquele ano, uma em cada quatro mulheres era vítima de violências desse tipo, segundo a ONG Abaad, que organizou a manifestação.
Na ocasião, a Abaad, que milita por punições mais severas para autores de abusos sexuais para conscientizar a opinião pública, se valeu da 16ª edição da maratona na capital para, com suas ativistas vestidas de preto, protestarem entre os atletas com cartazes em árabe e inglês. "Julguem o estuprador, não a vítima" e "Hoje não vou correr, vou confrontar meu estuprador".
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