"Aprendi com as indígenas sobre um outro feminismo", diz fotógrafa mexicana
Não só de técnica e de temas interessantes é feita uma boa foto, ela também é resultado da liberdade e da intuição. Isso é o que Maya Goded, fotógrafa e documentarista mexicana com mais de 30 anos de profissão, diria a ela mesma no início da carreira. Assim, em busca dessa voz que ela chama de sincera e real, que Maya tem guiado o seu trabalho, passando por temas sensíveis e, às vezes, espinhosos, como a prostituição, a violência de gênero, as disputas por território e o registro dos saberes indígenas transmitidos de geração em geração.
Ela já registrou o desaparecimento de mulheres, a cultura de comunidades afrodescendentes e o sincretismo dos rituais religiosos no país. Viajou desde a fronteira norte do México com os Estados Unidos até a costa de Oaxaca e Chiapas, no sul do país, passando pelo centro caótico da Cidade do México.
Em comum, parte dos seus projetos contam essas histórias a partir das mulheres, seja mostrando a dor que fica quando uma delas é assassinada, seja na força dos saberes ancestrais que elas guardam ou na complexidade da rotina das que ganham a vida com a prostituição. Branca e de família imigrante espanhola, Maya reconhece a sua diferença, os seus privilégios, mas trata de criar laços com as suas personagens a partir do que têm em comum: a maternidade. "A gente vinha de vidas totalmente diferentes, mas a maternidade foi um ponto em que a gente se conectou", conta.
Maya é uma das fotógrafas mais reconhecidas e premiadas do México. Agora, ela acaba de se tornar a primeira latino-americana a ganhar o Storytelling Fellows 2020-2021, prêmio da National Geographic Society, que apoiará financeiramente nove projetos apoiados no próximo ano. Em "Cura, Corpo e Território", Maya Goded vai registrar a resistência das mulheres indígenas contra a exploração da biodiversidade e dos recursos naturais, além de mostrar o conflito socioambiental na América Latina, através de rituais de cura, experiências espirituais e da medicina tradicional.
Na entrevista a seguir, Maya fala ao Universa sobre feminismos, violência e desigualdade de gênero, isolamento social, fotografia e sobre como tudo isso afeta o seu próprio corpo. "Não podemos falar de igualdade enquanto alguns grupos de mulheres estiverem atrás. Creio que nisso somos muito parecidas em toda a América Latina".
Qual é o seu objetivo ao fotografar uma mulher?
Eu acredito em colocar a voz das mulheres. Quase todas as histórias estão contadas pelos homens. Então, acho que é importante colocar as histórias contadas pelas mulheres, e de todos os tipos, de todas as lutas, desde a luta pelo território até a espiritualidade e a cura como um ato político. São as mulheres que estão cuidando, dando comida às crianças, são as primeiras que enfrentam as disputas por recursos naturais, a violência sistematizada dos mega projetos.
Como você consegue se aproximar de mulheres tão diferentes de você?
Eu acho que o mais importante quando você trabalha com outras pessoas é ser sincera, é dizer "essa sou eu, branca, com essas limitações". Tratando de aprender, de não ir com ideias pré-concebidas. Esse é um exercício muito importante do feminismo: se abrir a perguntas, que se desmoronem as suas próprias teorias de vida. Acho que é aí que se dão as conexões. Quando eu comecei a trabalhar com questões de prostituição, eu era muito jovem, a maternidade foi o meu ponto de contato com elas. E foi assim também na fronteira norte [do México], quando trabalhei com imigrantes. Uma vez, eu estava em uma casa, onde todos usavam heroína, e uma mulher de uns 40 anos virou para mim e disse: "vai vir outro cartel, vão matar todo mundo, e eu quero ver os meus filhos que estão nos Estados Unidos. É possível mudar?". E eu também estava em crise, estava me perguntando isso [se era possível mudar]. E respondi: "estou trabalhando com uma organização que trata dependentes químicos, eles vem me buscar e acho que podem te ajudar". Ela subiu no carro comigo. Eram realidades diferentes, mas foi uma conexão muito forte. E é aí onde eu me deixo mover, é onde as pessoas me permitem fotografar. Algumas não se deixam conectar, mas é muito bonito quando essa relação acontece.
Como a sua própria maternidade se relaciona com o seu trabalho?
A maternidade teve muito a ver com o meu trabalho sobre prostituição. No [projeto] anterior, que se chamou "Tierra Chica", na Costa Chica [do México], foi quando eu entendi que tinha que me envolver com as comunidades a partir das mulheres. Foi uma aproximação muito profunda. Eu me dei conta que me interessava por elas e então comecei a fotografá-las. Depois eu engravidei e fiquei mais tempo na Cidade do México, de onde eu sou. Comecei a caminhar mais, a conhecer mais a minha cidade. Fui a uma zona que eu sempre gostei, que sempre me chamou a atenção, onde mulheres mais velhas se dedicavam à prostituição. Aí eu me sentei e comecei a observar como elas se moviam, até que passaram a conversar comigo e um dia fui parar em um quarto com uma delas. A gente vinha de vidas totalmente diferentes, mas a maternidade foi um ponto em que a gente se conectou. Esses laços, para mim, são importantes, porque aí você começa a fotografar desde essas conexões, dos interesses em comum. Então a maternidade foi um ponto de encontro, de diálogo com elas.
De que forma você acredita que personagens e experiências que você tem registrado nos últimos anos no México se conectam com mulheres de outros países, especialmente da América Latina?
Eu acho que é o fato de que existe uma luta, que percebemos quando, nos últimos anos, as mulheres saíram às ruas. E aí a gente se viu refletidas em outros países, porque são as mesmas lutas. Foi bonito nos darmos conta dessa conexão das mulheres em toda a América Latina. Isso me encanta. As mulheres ainda ganham menos que os homens. Há uns dois anos participei de uma reunião com mulheres fotógrafas e várias contaram como ganhavam menos que os homens e que não participavam de grandes projetos, porque [os chefes] pensavam que elas não tinha capacidade, que podiam ser [lugares] violentos e que elas não eram capazes de resolver. Além disso, em toda a América Latina compartilhamos desigualdades de educação e saúde em relação aos grupos afrodescendentes e indígenas. Enquanto seguirem essas desvantagens, seguiremos atrasados. É uma forte violência. E não podemos falar de igualdade enquanto alguns grupos de mulheres estiverem atrás. Creio que nisso somos muito parecidas em toda a América Latina.
As mulheres na América Latina compartilham a mesma violência de gênero. Mas também vejo que compartilhamos a mesma luta pela terra, pelos nossos direitos, por uma mudança estrutural.
O que essas mulheres que você fotografa (muitas de comunidades indígenas, regiões periféricas e fronteiriças) podem contribuir para os feminismos contemporâneos?
O que o feminismo indígena, por exemplo, me ensinou a não pensar que o feminismo deve ser vivido de igual maneira pelas mulheres de povos tradicionais e das que têm uma influência ocidental, que vivem nas cidades. Aproximar-se dessas comunidades e ouvir a sua visão é aprender que há uma solidariedade diferente entre mulheres, um questionamento profundo do colonialismo e do racismo, que muitas vezes falta no nosso discurso feminista. É um feminismo mesclado com a comunidade, com o território e a natureza, um questionamento muito feroz desse consumismo brutal e violento que estamos submersos na cidade. Chego nessas regiões como uma mulher da cidade, que ganha o seu dinheiro, que pode estudar, mas não posso pensar que todas as mulheres têm que vive-lo da mesma forma. Então é preciso estar aberta a esse diálogo, aprender a escutar, se não você acaba reproduzindo a violência, o classismo.
De que maneira as violências, mas também a força das mulheres que você fotografa, te afetam?
Há muitos anos, quando eu trabalhei em Ciudad Juarez [na fronteira com os Estados Unidos] com mulheres desaparecidas, aí [o trabalho] começou a me afetar emocionalmente. Tanto que minhas mãos ficaram paralisadas e não pude continuar. Essas violências que tenho fotografado atravessaram o meu corpo, e em um momento era como ele me dissesse "você não pode", mas eu não me permitia aceitar que não podia fotografar. Depois eu comecei a ter medo. Eu tenho uma filha e quando ela tinha 13 anos, estava começando a sair e tudo, um dia me disse: "mãe, não me passe os seus medos, eles são seus". Aí eu me dei conta que tinha que me cuidar. Eu tive essa experiência [de medo e paralisia], mas também a de ser curada com mulheres, e isso se tornou uma forma de viver. Para mim, é cada vez mais importante fazer um fogo e estar em círculos de mulheres para curar-nos, para compartilhar, falar, pensar e fazer perguntas. Todos esses ensinamentos hoje estão em mim, no meu corpo, no meu pensamento.
Como você planeja realizar o seu próximo projeto, "Cura, Corpo e Território", em um contexto de pandemia?
É um ingrediente complicado. Mas também está me dando tempo para pensar e investigar mais afundo, de entender por onde vou e esperar o melhor momento. As regiões onde estive trabalhando estão fechadas agora, não se pode entrar. E é uma responsabilidade entrar nessas zonas e não levar o vírus para as comunidades. Existem muitas coisas para pensar e mais tempo para fazer a pesquisa, que cada dia penso que é mais importante para o meu trabalho.
Com 30 anos de profissão, o que a Maya de hoje diria para a Maya no início da sua carreira?
Eu diria que tenha confiança em buscar os meus passos, a minha voz. Eu acho que isso é o mais importante para o meu caminho na fotografia, os trabalhos que vêm da busca de uma voz sincera e real, porque vêm de uma honestidade. E confiar muito na sua intuição, não deixar que ninguém interfira no seu caminho, porque aí está a liberdade, a busca pelo que se quer. Eu não diria sobre o que é uma boa foto, ou quais temas tenho que tratar, porque a busca é mais interior, um diálogo consigo mesma.
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