Vítima de estupro pelo irmão na infância cria ONG de apoio a mulheres
Transformar a dor de um estupro em luta contra esse crime: foi o que fez a funcionária pública Marizete Santiago Silva Pires. A moradora de Salvador (BA) foi abusada sexualmente e agredida fisicamente, durante a infância, pelo irmão dez anos mais velho. Fugiu de casa aos 16 anos para que os abusos cessassem e, mais tarde, criou uma ONG para tentar evitar que outras mulheres, crianças e adolescentes sofram o mesmo que ela.
Marizete, assim como a menina de dez anos abusada pelo tio no Espírito Santo e como diversas outras crianças vítimas de abuso sexual no país, teve que conviver com o abusador durante sua infância e adolescência.
A primeira vez em que sofreu um abuso foi na casa onde morava com os pais e mais nove irmãos. A família residia em um imóvel no subúrbio de Salvador, com apenas dois quartos: os pais ficavam em um e os filhos todos juntos em outro cômodo, com meninos e meninas dividindo a mesma cama.
Aos sete anos, começaram os primeiros abusos. "No começo, eram passadas de mão nas minhas partes intimas, que foram evoluindo depois que meu pai faleceu. Aos 13, lembro que um dia ele [o irmão mais velho] me levou para o banheiro e começou a se esfregar em mim. Assustada, eu saí correndo e fui para a casa da vizinha", conta hoje, aos 54 anos.
Sem aceitar os abusos e as constantes agressões físicas do irmão mais velho, que a ameaçava e agredia com socos para que ela não contasse nada, Marizete pediu ajuda primeiro para a própria família. Mas sua mãe não acreditou nela.
"Cheguei a procurar a polícia e a registrar um boletim de ocorrência, mas, para dar seguimento à denúncia, era preciso que minha mãe assinasse o documento. E ela não quis. Minha mãe não tem estudo, é uma pessoa muito simples e foi criada em um ambiente machista. Ela acreditava que meu irmão era o responsável pelo sustento da casa, então tínhamos que aceitar tudo. Naquela época não tinha o ECA [Estatuto da Criança e Adolescente]", diz Marizete.
Entre as agressões sofridas, a agente de saúde lembra que levou uma garrafada na cabeça e chegou a ter a perna quebrada pelo irmão.
Para fugir das agressões e abusos, aos 16 anos Marizete passou a trabalhar como empregada doméstica e babá em casas de famílias. Assim, ela tinha um local para dormir e não precisava voltar para junto da mãe e dos irmãos.
ONG oferece conversa, curso e abrigo
Trabalhando nas mais diversas funções, Marizete conseguiu concluir os estudos, foi aprovada em um concurso público e passou a trabalhar como agente de saúde. Mas, ao visitar casas da comunidade, seu passado veio à tona ao se deparar com situações de abuso semelhantes à que viveu na infância e adolescência.
"Essas situações de abuso sexual, violência física e moral são mais comuns do que muita gente imagina. A dependência financeira e emocional deixa muitas mulheres vulneráveis e os homens acham que são donos delas. Vendo essa situação e por ter enfrentado isso dentro de casa, eu resolvi ajudá-las", diz.
Para acolher e dar o tratamento adequado às mulheres, ela buscou apoio de diversos profissionais, como psicólogas, assistentes sociais e advogadas, e da Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam), e criou a ONG Mulher por Mulher. Cerca de 45 mulheres integram essa rede de ajuda.
O apoio oferecido pela Mulher por Mulher vai desde uma conversa até a oferta de cursos profissionalizantes para que essas mulheres se capacitem para o mercado de trabalho. Em casos mais graves, o grupo oferece auxílio financeiro e abrigo para a vítima. Atualmente, 116 mulheres são atendidas.
"Nós visitamos essas mulheres duas vezes por semana, temos um grupo de roda de conversas e vamos ajudando-as a saírem do ciclo de violência, fazendo elas entenderem que não são culpadas pelo que está acontecendo", diz Marizete. "Quando é preciso, acompanhamos até a delegacia ou o fórum para que se sintam seguras. E, para que elas não sejam dependentes financeiramente dos maridos, fazemos parcerias com escolas e damos cursos profissionalizantes, como de cuidadores de idosos."
Devido à pandemia, os cursos e rodas de conversas não estão sendo realizados, mas o grupo continua oferecendo apoio por telefone, WhatsApp e visitas.
Crianças e adolescentes também recebem orientações do grupo Mulher por Mulher afim de evitar que sejam vítimas de abusos sexuais dentro de casa. O trabalho com esse público é feito por meio de palestras e conversas e acontece dentro das escolas e associações de bairro.
Violência dentro de casa
Marizete destaca que casos como o dela e o da menina abusada pelo tio no Espírito Santo são comuns em áreas de periferia. Por isso, Marizete acredita que dar amparo às mães é uma forma de ajudar a combater esse tipo de crime.
"Uma mãe que apanha em casa possivelmente pode ter também a filha abusada por esse agressor. Muita gente culpa a mãe, mas ninguém sabe o medo que é passar por essa situação", diz. "A gente morre por dentro, é uma morte psicológica e tem que ter muita força para se recuperar."
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