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Deputadas pedem que portaria sobre aborto legal seja suspensa: "Retrocesso"

O aborto é permitido em três casos na Colômbia: estupro, malformação do feto e risco à saúde da mãe - AFP
O aborto é permitido em três casos na Colômbia: estupro, malformação do feto e risco à saúde da mãe Imagem: AFP

Janaina Garcia

Colaboração para Universa

29/08/2020 04h00

A portaria do Ministério da Saúde publicada nessa sexta-feira (28) e que estabelece novas regras para atendimento ao aborto nos casos previstos em lei inviabiliza o atendimento de mulheres e meninas vítimas de violência sexual nos serviços de saúde e representa um retrocesso "inadmissível".

A avaliação consta de um projeto de decreto legislativo protocolado na Câmara dos Deputados por um grupo de parlamentares mulheres encabeçado por Jandira Feghali (PCdoB-RJ), autora da medida, pela suspensão da portaria. Assinam a coautoria as deputadas Fernanda Melchionna (PSOL-RS), Perpétua Almeida (PCdoB-AC), Alice Portugal (PCdoB-BA), Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Luiza Erundina (PSOL-SP), Lídice da Mata (PSB-BA), Natália Bonavides (PT-RN), Áurea Carolina (PSOL-MG) e Erika Kokay (PT-DF).

A nova norma obriga profissionais de saúde a avisarem a polícia quando atenderem pacientes que peçam para interromper uma gestação em razão de estupro. No texto do projeto de lei, as parlamentares classificam que tais exigências teriam sido uma "reação ao recente caso de autorização judicial para a realização da interrupção da gravidez de uma criança de apenas 10 anos e não com a base técnica que deveria orientar as políticas públicas. Isso é inadmissível". O caso aconteceu no Espírito Santo, e a menina, estuprada, teve de fazer o aborto em um hospital no Recife, na semana passada.

"Entendemos que tanto a legislação em vigor atualmente como as normas infra legais que tratam do tema foram fruto de muito debate e não podem sofrer retrocessos. Qualquer norma que ofereça constrangimentos para o exercício de um direito deve ser prontamente contestada", afirma o documento liderado por Jandira. "As mulheres vítimas de violência sexual são constantemente revitimizadas ao enfrentar o caminho para fazer valer sua opção pelo aborto legal. Na prática a portaria inviabiliza o atendimento das mulheres e meninas vítimas de violência sexual nos serviços de saúde, ao fazer tais exigências", define o projeto.

Em seu perfil no Twitter, Jandira informou que a medida protocolada por ela e assinada por outras mulheres deputadas busca derrubar medida que "dificulta a realização do aborto legal e ainda prevê constrangimento e violência psicológica à mulher".

Para psicóloga, portaria gera dano psíquico ainda maior à mulher

Para a psicóloga Daniela Pedroso, do GEA (Grupo de Estudos sobre o Aborto), em São Paulo, a portaria do Ministério da Saúde implica em nova violência a mulheres que já sofreram com a violência sexual.

"Essa medida é uma revitimização causada pelo Estado, à medida em que reforça que essa mulher não tem um direito que é constitucional", avalia.

A psicóloga Daniela Pedroso - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A psicóloga Daniela Pedroso
Imagem: Arquivo Pessoal

Daniela trabalha há 23 anos com mulheres em situações de aborto previstas na lei brasileira —como em caso de risco à saúde da mãe e estupro, por exemplo.

Entre as diversas medidas que devem ser cumpridas pelas equipes de saúde para que gestantes tenham acesso ao procedimento, define a portaria, está a exigência de que os médicos informem à mulher a possibilidade de ver o feto em ultrassonografia. É esse um dos pontos que, na avaliação da especialista, tornam a portaria particularmente mais nociva a essas mulheres que sobrevieram à violência sexual, uma vez que as poderia induzir a desistir do aborto legal.

"Isso gera um dano psíquico à mulher ainda maior, uma vez que repete uma situação de tortura que é ela ver, de novo, além da gestação em si, a concretização do estupro. Isso reforça a violência contra ela", diz a psicóloga.

A obrigação de falar à mulher sobre os riscos de morte no procedimento do aborto propriamente dito, até as 14 semanas gestacionais, também causa a revitimização, defende Daniela.

"O risco de morte é inerente a qualquer procedimento cirúrgico. Colocar isso dessa forma, nesse contexto, é um absurdo."

Mulher seria obrigada a ver de novo estupro ao qual sobreviveu

Indagada como as mulheres estupradas lidam com o fato de estarem grávidas, no atendimento psicológico, ao tratarem da possibilidade do aborto legal, a psicóloga é taxativa: "Elas não veem o feto como uma futura criança, e sim, como mais um dano da violência sexual, ou seja, como algo ruim do qual elas querem se livrar. Chegam a ver como uma doença, e não uma futura criança. Mesmo sabendo que é uma parte delas que está [geneticamente] ali, a outra parte advém de um gesto de monstruosidade praticada por um desconhecido em alguma atividade cotidiana dela", explica.

"O dano de uma portaria dessas não vai ser para nós, profissionais de saúde, que, em tese, teríamos de ser obrigados a denunciar casos e suspeitas. O dano maior é para quem será obrigada a ver de novo concretizado o estupro ao qual sobreviveu", diz. "É justo colocar em risco toda a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo? Não."