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Moda escrava: mulheres são maioria em trabalho indigno na área têxtil em SP

Bolivianos em trabalho análogo ao da escravidão - Apu Gomes/Folhapress
Bolivianos em trabalho análogo ao da escravidão Imagem: Apu Gomes/Folhapress

Luiza Souto

De Universa

29/08/2020 04h00

No ano passado, 139 pessoas foram resgatadas em condições análogas ao trabalho escravo em São Paulo. Segundo levantamento inédito do Ministério Público do Trabalho do estado, feito a pedido de Universa, entre as vítimas 44 eram mulheres. E, dessas 44, 43 trabalhavam em oficinas de costura. Apenas uma atuava como doméstica. Os dados abrangem a capital, o Grande ABC e a Baixada Santista.

O setor têxtil é o que mais recebe denúncias por recrutar pessoas de forma insalubre na região. E as mulheres são a grande maioria das vítimas em condição de trabalho análogo à escravidão nesse setor. Segundo especialistas, a exploração delas é um efeito do machismo nesse meio, que vê na tarefa de corte e costura algo a ser realizado por esse público, e também por ser de fácil aprendizado para elas.

O Código Penal brasileiro identifica trabalho análogo à escravidão aquele em que as condições de trabalho são degradantes, colocando em risco a saúde e a vida do trabalhador, e quando há também jornada exaustiva, salários muito baixos, trabalho forçado e servidão por dívida.

Em 2017, das 168 queixas sobre possível trabalho escravo recebidas pelo MPT-SP, 52 eram contra essa a área têxtil, seguida pela construção civil (17) e pelo setor de restaurantes (4). No ano seguinte, das 194 denúncias, 50 referiam-se ao setor têxtil, enquanto o segundo colocado, a construção civil, recebeu seis denúncias no total.

Foi em 2018, inclusive, que a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo condenou a grife Amíssima a pagar indenizações de R$ 533 mil por manter duas oficinas de confecção cujos funcionários trabalhavam em condições análogas à escravidão. Segundo relatório divulgado pelo órgão, 14 trabalhadores (a maioria de origem boliviana) viviam em dois imóveis, localizados nos bairros do Bom Retiro e do Belenzinho, na capital paulista. Uma calça na loja pode custar R$ 3.000.

Em 2019, outra grife famosa foi atrelada ao trabalho escravo: segundo o Ministério da Economia, a Animale, que pertence ao grupo Soma (assim como as marcas Farm, Fábula, A. Brand, FYI, Foxton e Off Premium) foi acusada de subcontratar costureiros imigrantes bolivianos e submetê-los a jornadas de mais de 12 horas por dia. A marca tem à venda vestidos que custam R$ 6.500.

Dados do aplicativo Moda Livre, desenvolvido pela ONG Repórter Brasil, apontam que mais de 35 marcas de moda já foram envolvidas com trabalho escravo no Brasil e que mais de 400 costureiros e costureiras foram encontrados em condições análogas à escravidão no Brasil desde 2010.

No ano passado, o setor têxtil seguiu nesse triste ranking e representava 18% (57) das 311 denúncias. Essas denúncias também incluem tráfico de pessoas, já que uma de suas finalidades é o trabalho escravo. Um exemplo é quando a pessoa recebe um convite de trabalho em outra região, mas quando chega ao local tem seus documentos apreendidos e é obrigada a realizar outra tarefa, como a prostituição.

Celeiro fértil para violência de gênero

O estado de São Paulo possui o maior polo têxtil do país, uma indústria que trabalha, com frequência, com a informalidade na cadeia produtiva e com mão de obra barata, principalmente vinda de outros países.

"O modus operandi do setor é a terceirização do serviço de corte e costura. E a cidade de São Paulo concentra a maioria de imigrantes da Bolívia, do Paraguai e, mais recentemente, da Venezuela", diz a promotora do trabalho Tatiana Simonetti. "As mulheres que vêm desses países não têm educação escolar nem capacitação profissional, e o corte e a costura são de fácil aprendizado. Então é para as oficinas de costura clandestinas que as famílias vão e trocam teto pelo trabalho."

A presidente da Asbrad (Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude), Dalila Figueiredo, que há 25 anos assiste mulheres vítimas de violências, como o tráfico de pessoas, acrescenta que a exploração delas no setor têxtil, principalmente das imigrantes, é um efeito do machismo que tende a desvalorizar trabalhos considerados femininos, como a costura e o serviço doméstico.

"As imigrantes são as vítimas perfeitas para ocupar esse lugar da exploração porque estão longe da família, têm dificuldades com o idioma, desconhecem as leis e, portanto, os meios de proteção e canais de ajuda, como o Ligue 180 [Central de Atendimento à Mulher]", explica.

"O agravante das confecções de roupas clandestinas é que o mundo do trabalho e o mundo doméstico estão longe da fiscalização. O que as torna um celeiro fértil para a conexão entre as diversas formas de violência baseada em gênero. A mulher explorada em condições análogas à escravidão também é obrigada a assumir sozinha o trabalho doméstico no local. E muitas são vítimas de violência, como agressões psicológicas, físicas, patrimoniais e tentativas de feminicídio, situação agravada pelo isolamento social", diz Dalila.

Segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho), 71% das vítimas de trabalho escravo contemporâneo no mundo são mulheres. No Brasil, os dados apontam que elas seriam apenas 5%. Para especialistas, a diferença gritante entre os dois índices é resultado da subnotificação.

O casamento forçado, o trabalho doméstico e a exploração sexual são os tipos de escravidão mais comuns no mundo. No Brasil, há poucos relatos de casamento forçado e, por isso, ele é quase desconsiderado. A falta de regulamentação da prostituição também dificulta sua classificação como trabalho forçado ou análogo à escravidão, conforme reportagem do UOL mostrou recentemente.

Dificuldades no combate

Por causa da pandemia provocada pelo novo coronavírus, o combate aos crimes de trabalho análogo à escravidão e tráfico de pessoas ficou parado de março a maio deste ano.

Para se ter uma ideia das consequências dessa interrupção, em 2018, em todo o Brasil, houve 253 estabelecimentos fiscalizados e 1.752 trabalhadores em condições análogas à escravidão encontrados nessas inspeções. No ano passado, foram 279 locais verificados e 1.113 pessoas resgatadas. Neste ano, com a interrupção temporária da fiscalização, foram apenas 45 inspeções até agora e 231 resgates em todo o país. Os dados são do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, do Governo Federal.

Em alguns estados, fiscais do trabalho ainda não retornaram às suas atividades, explica a procuradora do trabalho e coordenadora nacional da Conaete (Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo), Lys Sobral Cardoso

"Antes da pandemia, já estava mesmo faltando fiscal na rua. Enquanto isso, a situação de miséria aumentou, já que o setor econômico fechou as portas. Quem já estava trabalhando sem registro, agora mais do que nunca, precisou trabalhar. E as pessoas se sujeitam a isso [condições precárias de trabalho] por necessidade, para ter o que comer", diz Lys.

A pena para quem submete uma pessoa a trabalho escravo ou a condição análoga à de escravidão é de cinco a dez anos de reclusão e multa. Denúncias podem ser feitas nos canais Disque 100 e Ligue 180.

A Lei de Migração garante residência à vítima de tráfico de pessoas, de trabalho escravo ou de violação de direitos, agravada por sua condição migratória, afirma Lys.

"Mas é importante que a polícia vá ao local com toda uma rede de atendimento, como assistentes sociais. Essas pessoas são retiradas do local onde acontece a exploração e ficam onde? É preciso ter, por exemplo, casas de acolhida porque nos preocupa o pós-resgate."