Em reuniões virtuais, mulheres são atacadas com pornô e mensagens machistas
Com pelo menos 115 participantes em uma reunião para falar sobre o mercado de tecnologia para mulheres, a gerente de comunicação da Intel, empresa do ramo, Carolina Gutierrez, levou um susto: em vez do slide que ela compartilhava em apoio à palestra, o grupo, que assistia ao evento em uma reunião do Zoom, viu um órgão genital masculino ser desenhado na tela. Foi o primeiro indício de uma invasão de hackers.
Em dez minutos de tumulto, três pessoas infiltradas destilaram ódio às mulheres e tentaram acabar com o evento: compartilharam áudio de conteúdo pornográfico, como o gemidão do WhatsApp, para que todas ouvissem, e escreveram na tela "Cala boca, vadia". O caso foi em 20 de agosto.
O fenômeno de ataques virtuais em reuniões na plataforma — cada vez mais usada para estabelecermos contato durante o isolamento social — já é tão comum que a imprensa estadunidense cunhou um nome para a ação: zoombombing. O alvo não é exclusivamente mulheres; eventos de universidades e até mesmo aulas de ginástica online são espaços de invasão.
"É a sensação de como se eu tivesse sido assaltada na rua e tivessem levado meu celular. Fiquei muito nervosa", conta Gutierrez que, com apoio das participantes, conseguiu dar continuidade ao evento.
"Estou há anos trabalhando na área e defendendo que o lugar da mulher é na tecnologia e onde ela quiser, mas quando vi o que estavam fazendo, entendi porque algumas mulheres desistem de seguir na carreira, por exemplo. É um ódio a nós em uma situação que eu nunca imaginei que fosse viver".
Nas quatro situações apuradas por Universa, o zoombombing/invasão tem raízes ou na violência de gênero ou em um viés político partidário. Mas já houve casos em que as chamadas de vídeo foram interrompidas por materiais que denotavam racismo, e por imagens como decapitações de pessoas e símbolos nazistas.
Duas mulheres que concorrerão a cargos políticos nestas eleições municipais também foram recentemente atacadas com a estratégia, na mesma plataforma: a deputada estadual Renata Souza (PSOL) , que foi interrompida por imagens como do "V" de Vingança, associadas ao grupo Anonymous, e a deputada federal Fernanda Melchionna, do mesmo partido. Na transmissão virtual da segunda parlamentar, o conteúdo divulgado pelos hackers foi um vídeo com cenas de Jair Bolsonaro (sem partido).
Invasão a reuniões de mulheres no Zoom
O hackeamento das reuniões da plataforma Zoom ou em outras de videochamada se dá de forma sistemática: um grupo de pessoas entra no link da videoconferência, geralmente enviado apenas a quem que preencheu formulários externos ao Zoom.
Em um dado momento, em que a sala tem quantidade razoável de participantes, os hackers atacam o evento com inserções de áudio, vídeo e desenhos pornográficos. Há ainda xingamentos e compartilhamento de cenas de sexo.
A promotora do Ministério Público de São Paulo Valéria Scarance, que também é coordenadora do Núcleo de Gênero do órgão, foi vítima da ação de hackers no dia 18 de agosto. O ataque aconteceu na plataforma Meet, do Google, e foi correlacionado ao tema de que ela tratava na reunião da Universidade Estadual do Norte do Paraná: a violência contra mulher na internet.
"Aqui é um clube feminista?"
"Eu falava para um público de 80 estudantes sobre as conquistas históricas da Lei Maria da Penha. Quanto comecei a abordar o direito das mulheres ao respeito, surgiram vozes de homens e mulheres dizendo coisas como 'homem tem que mandar mesmo', 'aqui é um clube feminista?'", relembra.
"Foi um ataque 100% [baseado em violência] de gênero. Diziam que aquilo era falta de homem, de um jeito muito baixo. Depois, colocaram vídeos pornôs em que a mulher aparecia na condição de submissão".
Scarance afirma que os invasores dividiram com os participantes um link que direcionava a conteúdo de estupro infantil. O material com prints das conversas deixadas no chat do Zoom, diz a promotora, foi encaminhado para o MP como notícia de fato e o caso já está sendo apurado por uma promotoria criminal para que sejam identificados os autores do ataque.
Mulheres políticas na mira
Fernanda Melchionna fazia o lançamento da pré-candidatura à prefeitura de Porto Alegre quando foi interrompida por áudios com funk com letra machista e vídeo com trechos de imagem de Jair Bolsonaro.
"Os hackers usavam nomes comuns, como Amanda, Marcelo. Tinham 100 pessoas na sala e mais 200 aguardavam para entrar. Nós mudamos de link, mas eles entraram também. Não conseguimos fazer o evento", explicou. A estratégia, diz a política, será usar redes aparentemente mais seguras, como o Facebook e o Youtube, para fazer lives e conversar com a militância. "A ideia de fazer um evento com senha restringiria o acesso. E nós queremos fazer as reuniões como se fossem assembleias, com os microfones abertos".
Depois do ataque, que aconteceu em 21 de agosto e foi atribuído à "extrema-direita" pela deputada, Melchionna registrou um boletim de ocorrência na Polícia Civil e protocolou um ofício no Tribunal Regional Eleitoral (TRE) para dar seguimento às investigações sobre os autores.
A deputada estadual Renata Souza, que também foi hackeada pelo Zoom, afirma que o tipo de interrupção que ela e Melchionna sofreram parte do "medo sendo utilizado como estratégia" e tem conexão com a violência política de gênero — caracterizada por ofensas e perseguições a mulheres políticas simplesmente pelo fato de elas serem mulheres.
"Tem relação com o gênero, sim, eram xingamentos como 'puta'. E um fato: você não vê homens que estão na política, ainda que tenham diferentes visões, sendo atacados como as mulheres são", diz a deputada. "E não é de hoje que eu recebo ameaças: já tive meus dados pessoas, endereço de casa, em grupos de WhatsApp. Se fossem ataques no campo política, por que não deram o endereço, o telefone e o e-mail do meu gabinete?".
Internet como palco para violência contra mulheres
Para a promotora Valéria Scarance, oZoombombing direcionado a mulheres, incluindo aquelas que têm cargos públicos e políticos, se tornou uma modalidade nova de tentativa de silenciamento e de enfraquecimento de vozes femininas na sociedade.
"A internet já é palco de violência contra mulheres há muito tempo. O revenge porn (pornô de vingança), por exemplo, é contra as mulheres, só que de forma individual. O que acontece é que o Zoombombing é uma violência orquestrada, estratégica e coletiva que tenta nos calar", pontua.
Scarance avalia que a legislação brasileira já tem tipos penais específicos que asseguram os direitos das mulheres vítimas (como a Lei Maria da Penha e a de crime por divulgação de fotos íntimas). Cabe, ainda, avançar neste sentido. "Se criasse uma que contemplasse esse tipo de violência simbólica, ele poderia ser colocado como um crime ou teria uma infração administrativa".
A essa camada, pondera Renata Souza, soma-se o embate político que se aproxima com a campanha eleitoral — oficialmente liberada a partir de 27 de setembro. "Estamos em um momento muito delicado em que as divergências políticas viraram violência política".
Segurança
Universa entrou em contato com a assessoria de imprensa do Zoom, para saber que medidas a empresa está tomando em relação às possíveis falhas que resultam nas invasões de reuniões. Por e-mail, a empresa respondeu que "condena veementemente esse tipo de comportamento" associado à violência de gênero e encoraja que os usuários procurem as autoridades policiais para registrar os casos.
O Zoom disse ainda que as interrupções se dão como um "péssimo resultado de malfeitores tirando vantagem do fato de os usuários compartilharem publicamente suas informações de reunião, como IDs e senhas de reunião, online (como nas redes sociais)". A sugestão da empresa é que as pessoas ativem estratégias de proteção, como ativar salas de espera, senhas e limitar o compartilhamento de tela, recursos acrescentados recentemente por eles. E que, se possível, usem a versão webinar da plataforma, limitando o número de participantes no painel.
Em abril, com as reiteradas informações de ataques pela plataforma, a empresa reconheceu que "não atingiu as expectativas de privacidade e segurança da comunidade". O Zoom tem um guia de práticas de segurança para os usuários (em inglês).
No site de apoio ao usuário do Meet, o Google afirma que tem, entre outras medidas de segurança, "verificação em duas etapas, como chaves de segurança, Google Authenticator, solicitação do Google e mensagem de texto SMS" e o "Programa de Proteção Avançada que oferece aos usuários proteções disponíveis contra phishing e invasão de conta".
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