Grávida, PM sofreu perseguição após criticar governador do Rio: "Covardia"
Após 14 anos servindo a Polícia Militar do Rio de Janeiro, a sargento Flávia Louzada, 39, quer levar a experiência em segurança pública para a prefeitura. A candidata a vice-prefeita na chapa de Cristiane Brasil (ex-deputada federal pelo PTB e filha de Roberto Jefferson) defende o porte de arma e a defesa pessoal para as mulheres. E credita os altos índices de letalidade policial à falta de políticas públicas na área de segurança.
Única mulher policial a participar da tomada do Complexo do Alemão em 2010, Flávia diz que viveu apenas um episódio de machismo na carreira, mas que mudou toda a sua vida a partir dali.
Em fevereiro de 2018, quando estava grávida dos gêmeos Helena e Dante, ela se licenciou da Polícia Militar aos cinco meses de gestação ao ser diagnosticada com pré-diabete e pré-eclâmpsia. Na época, o governador do estado era Luiz Fernando Pezão (PMDB), e, segundo a sargento, as polícias Civil e Militar enfrentavam sucateamento, com carros em estado precário e falta de coletes à prova de balas.
Numa entrevista, a então cabo criticou a situação da polícia e o governador, usando frases como "Ele se mostra incompetente em segurança", "A PM não nos dá nem mesmo uniforme" e "O 13º não foi pago".
Por causa de suas declarações, foi convocada para ir ao Quartel-Geral da PM, no centro do Rio, para dar explicações. Recebeu um documento para se explicar sobre suas ações, em que constava que ela havia se manifestado "de forma desrespeitosa à Autoridade Civil, sendo este, o Governador do Estado do Rio de Janeiro [...] censurando-o e procurando desconsiderá-lo".
"O Estado estava muito sucateado pela corrupção e policiais ficando tetraplégicos, doentes. Sob esse contexto, dei uma entrevista abrindo o verbo contra o governador. Foram cinco viaturas na minha casa, em Olaria, me buscar", diz Flávia.
Ela conta que ficou quatro horas no quartel prestando esclarecimentos, sem acesso a comida e remédio. Teve três convulsões dentro do QG e ficou uma semana internada no Hospital Central da Polícia Militar. Após o episódio, ela conta, Dante começou a não receber sangue nem oxigênio suficientes. Helena ganhava peso, e ele não, e o bebê entrou em sofrimento. O parto então aconteceu aos sete meses de gestação.
Helena ficou um mês na UTI, e Dante, dois. Após oito meses em observação e passar por vários médicos, veio o diagnóstico do menino: paralisia cerebral. O episódio no QG, alega Flávia, foi determinante para a condição de seu filho.
"Lá no hospital, ao fazer o ultrassom, a médica disse que a placenta do Dante tinha 'envelhecido o grau (quando a placenta amadurece), e dali em diante não passava mais alimentação e oxigênio como antes. A Helena se desenvolvia normalmente, e o Dante não. Antes, estava tudo normal, porque fazia ultra toda semana. Para ele não vir a óbito, tive que fazer o parto prematuro. Óbvio que se eu fosse homem não teria acontecido isso. Foi machismo e covardia comigo", diz ela.
Flávia afirma que pedirá na Justiça 500 salários mínimos (R$ 522.500) por danos morais ao Estado, além do pagamento do tratamento do filho. Universa procurou a assessoria de imprensa da Polícia Militar do Rio, por email e telefone, durante dois dias, para comentar a declaração, mas não teve retorno até a conclusão desta reportagem.
Na época do ocorrido, a Polícia Militar divulgou uma nota à imprensa informando que Flávia foi convocada a comparecer na Coordenadoria de Comunicação Social para "regularizar pendências administrativas: a entrega de sua arma particular para ser acautelada na reserva de armamento do Quartel-General pelo fato da mesma estar de Licença Temporária de Saúde (LTS)", mas não comentou sobre seu estado de saúde.
"Tinha que ser mulher"
Formada em educação física e ex-fisiculturista, Flávia desafiou o histórico do Bope, o Batalhão de Operações Policiais Especiais da PM e que só recruta homens, e foi a única mulher a fazer prova para a corporação em 2011, mas não passou no exame físico. Na sua avaliação, falta mais incentivo às policiais mulheres nas ruas e em unidades operacionais.
"Enfrentamos dificuldades como usar o banheiro na rua, por exemplo. E, a partir disso, precisamos provar que somos capazes de fazer a mesma coisa que o homem. Às vezes, eu chegava duas horas antes no serviço para ver se a arma estava em condição, porque tinha pavor de ouvir a frase: 'Tinha que ser mulher', se algo desse errado. Graças a Deus, nunca escutei."
Na sua avaliação, se houvesse mais mulheres nas ruas, a corporação teria mais confiança da população:
"No Complexo do Alemão, por exemplo, vinha muito bilhetinho na minha mão de morador falando onde tinha armas e drogas escondidas. Nesse ponto, a mulher inspira mais confiança".
Arma no combate à violência contra a mulher
Em entrevista recente a Universa, a pré-candidata à prefeitura Cristiane Brasil sugere que, se as mulheres tivessem acesso a armas de fogo e fizessem aulas de defesa pessoal, estariam mais protegidas. Como policial e mulher, Flávia concorda com sua companheira de chapa.
"Minha opinião sobre isso é suspeita porque ando armada 24 horas. O cara pula o muro da casa da mulher, tem luta corporal e pega a faca de cozinha. Será que não faria diferença ter a arma ali? Cada caso de violência tem uma particularidade e, dependendo do caso, a arma faria diferença, sim", acredita.
Para o economista David Hemenway, professor de saúde pública da Universidade de Harvard e diretor do Harvard Injury Control Research Center (Centro de Pesquisas em Controle de Ferimentos de Harvard, em tradução livre), considerado um dos principais especialistas americanos sobre o tema, ter uma arma e usá-la para autodefesa não parece reduzir as chances de ser ferido. Em entrevista à BBC News Brasil, ele afirma que diversos estudos indicam que os riscos de ter uma arma em casa superam os benefícios. Entre esses riscos estão os de acidentes fatais, suicídios, intimidação e de mulheres e crianças serem mortas. Suas conclusões são baseadas em 150 estudos sobre o efeito das armas de fogo na sociedade e na saúde pública feitos desde 1990 pelo centro que comanda.
"Quis ser policial para ser quem faltou para proteger minha mãe"
Nascida e criada em Olaria, na zona norte do Rio, e filha única, Flávia perdeu a mãe aos 11 anos, assassinada por um aluno na frente da escola onde ela dava aula, na Vila Cosmos, também na zona norte.
Naquele dia de 1991, o aluno chegou à escola com uma pistola e sob efeito de drogas. A professora pediu que ele voltasse no dia seguinte porque não parecia bem. Minutos depois, uma moto passou por ela e um dos ocupantes fez três disparos. Uma das balas atravessou seu pescoço. Por ser considerado área de risco, a ambulância não queria entrar no local para fazer o resgate, e a professora morreu após perder muito sangue.
Naquele momento, conta Flávia, nasceu a policial Louzada: "Entrei para a polícia com sangue nos olhos, para ser aquele policial que faltou ali para proteger a minha mãe."
O caso foi encerrado sem que ninguém fosse preso. Usando como exemplo a trajetória da própria mãe, que era cobradora de ônibus e conseguiu passar para o vestibular da UERJ e estudar história, ela discorda de que um criminoso também possa ser vítima da falta de políticas públicas.
"Não acredito que ele seja uma vítima da sociedade, nessa coisa de que seguiu por esse caminho porque não teve oportunidade. Tenho vários amigos que moram em comunidade e que acordam cedo para trabalhar. Óbvio que, se o poder público é forte e investe na educação, você tem mais oportunidades, mas vitimizar o cara que foi pro lado errado por causa da condição social é desmerecer quem está na mesma condição, mas pegou ônibus às 6h para trabalhar."
"Ninguém coloca farda para matar inocente"
Em 2018, a polícia do Rio de Janeiro foi apontada como a mais letal do país, com uma taxa de 9 mortes por 100 mil habitantes, uma taxa três vezes e meia maior que nos demais estados do país, segundo o Instituto de Segurança Pública, responsável por compilar as estatísticas criminais do Rio. Ano passado, o governo de Wilson Witzel (PSC) fechou com o maior número de mortes cometidas por policiais na história do Estado, desde o início da série do ISP, em 1998, com aumento de 18,3% em relação a 2018. De acordo com o órgão, o estado teve, em 2019, 1.810 mortes em suposto confronto —um crescimento de 18% em relação a 2018, quando houve 1534 vítimas.
Mas também é uma das polícias que mais morrem em ação. Em 2018, a corporação perdeu 89 policiais no Rio de Janeiro. Esse número corresponde a 26% do total de mortes de agentes no país, colocando o estado atrás apenas de Pará, Rio Grande do Norte e Amapá no ranking de mortes de policiais, segundo o CENPE/MPRJ (Centro de Pesquisas do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro)
Flávia credita esses dois resultados à falta de políticas públicas e investimento na polícia. E, indagada sobre a possibilidade de haver exageros nas intervenções policiais em comunidades cariocas, afirma:
"Ninguém coloca a farda para matar inocente. Mas, infelizmente, aqui no Rio de Janeiro, temos vários problemas, a começar pelo crescimento urbano desordenado. Não temos mapeamento das comunidades que ajude a gente a fazer operação com precisão. Jogo na ficha do poder público. Falta treinamento. Os policiais precisam passar por curso de reciclagem. Quando o poder público desvia dinheiro que deveria ser investido na segurança, de certa forma está deixando policiais destreinados."
Não posso responder por todos, mas quando ia para operação, tinha muito cuidado porque a perda de um pai, mãe ou filho [você] não tem como amenizar. Eu sei como é olhar um álbum da família e ter alguém faltando na foto
A guerra marcada no corpo
Mesmo de licença da polícia para participar das eleições, o amor pela corporação segue latente e está cravado nas costas de Flávia. Ela tem na pele uma tatuagem com o rosto da deusa grega da justiça, Têmis, e o brasão da PM, junto com a frase "Bendito seja Deus que adestra minhas mãos para a guerra".
Agora planeja cravar no corpo outra batalha, a dos cuidados com Dante, hoje com dois anos. De segunda a sexta-feira, ela leva o menino a uma clínica de reabilitação, para desenvolver os movimentos, e aos sábados e domingos faz os exercícios com o filho em casa.
"Toda mãe, quando recebe um diagnóstico como esse, entra em luto, porque nada será mais do jeito que se imaginou. Nenhuma grávida se prepara para esse mundo", diz.
"As pessoas pesquisam sobre troca de fralda, não sobre neuroplasticidade [capacidade das células nervosas de se readaptar ou adquirir funções de células que foram lesadas], fisioterapia, terapia ocupacional. Não é fácil ser mãe de especial. O tratamento é complicado, caro e não existe política para ajudar as mães. Mas nós mães de especiais temos um mantra que diz que 'diagnóstico não é destino'. Tenho vontade de fazer essa tatuagem."
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