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Lei que prevê depoimento especial a criança vítima de abuso ainda não pegou

Foto ilustrativa sobre abuso infantil - criança abraça urso de pelúcia - Getty Images
Foto ilustrativa sobre abuso infantil - criança abraça urso de pelúcia Imagem: Getty Images

Janaina Garcia

Colaboração para Universa

04/09/2020 04h00

"Você gostou?"
"Foi bom?"
"Mas por que você não contou à sua mãe?"

Acredite: perguntas como essas já foram feitas a crianças que sofreram abuso sexual. Poderiam ter sido perguntas feitas a elas pelos próprios abusadores. Mas as indagações vieram de trabalhadores dos sistemas penal e de justiça brasileiros, de delegacias ou salas de audiência, em espaços usualmente frequentados por adultos, sejam eles denunciantes ou denunciados.

Há dois anos e cinco meses, uma lei federal estabelece um conjunto de garantias e direitos a crianças e adolescentes vítimas de violência física, psicológica e sexual. O objetivo é proporcionar a eles uma escuta humanizada e evitar que sofram também com violência institucional, que ocorre no momento em que o Estado não protege os direitos do indivíduo e ainda o revitimiza.

A promotora Renata Rivitti - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A promotora Renata Rivitti
Imagem: Arquivo pessoal

Embora publicada em abril de 2017 e vigente desde 2018, a lei 13.431, que "estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência", funciona ainda em grande parte dos municípios brasileiros mais na teoria que na prática, segundo a promotora Renata Rivitti, assessora da Procuradoria Geral de Justiça do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) no Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Infância e Juventude no estado.

Ela conta que há um esforço de várias instituições em níveis estadual e federal a fim de que a lei seja efetivamente implementada. Uma dessas iniciativas é o acordo de cooperação técnica firmado em maio de 2019 entre o MP-SP, o Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública estadual e a Polícia Civil para a efetivação da medida.

Em âmbito nacional, em junho do ano passado, foi firmado um pacto entre o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), o Conselho Nacional dos Chefes de Polícia Civil (CONCPC) e os ministérios da Casa Civil, da Educação, da Saúde, da Cidadania, da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, além do Conselho Nacional do Ministério Público, da Defensoria Pública da União e do Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais (Condege).

Segundo o MJ, a ideia do acordo era "oferecer um norte para os atores envolvidos no sistema de garantias e direitos da criança e adolescente, concentrando-se nos serviços essenciais e na importância da atuação integrada".

Escuta protegida em Jacareí revelou "demanda absurda"

A assessoria da PGJ implementou em 2014 o projeto "Escutar para proteger", focado na escuta protegida de crianças na cidade de Jacareí (interior de São Paulo). O resultado, de acordo com ela, foi uma explosão de denúncias de situações de abuso, o que indicava, à época, uma demanda reprimida por esse tipo de acolhida.

"É impressionante que, quando se acolhe de forma adequada e se cria um sistema para isso, as coisas chegam em um volume assustador, porque a demanda passa a ser absurda — especialmente quando se treinam as escolas para ouvirem", destaca.

De acordo com a promotora, os dois direitos principais conferidos pela lei a crianças e adolescentes vítimas de violência e abuso sexual são a escuta protegida e o depoimento especial. Ambos, ela pondera, são fundamentais para se evitar o que a lei cita como "violência institucional", ou seja, procedimentos que constranjam a vítima, e, dessa forma, afetem também a instrução do processo — etapa de um julgamento em que depoimentos e provas são coletados a fim de subsidiarem a tomada de decisão pelo juízo.

A lei, sancionada pelo então presidente Michel Temer (MDB), estabelece que a escuta protegida é um procedimento de entrevista a respeito de uma possível situação de violência contra criança ou adolescente, a fim de garantir a proteção e o cuidado da vítima. Ela pode ser realizada pelas instituições da rede de promoção e proteção, formada por profissionais da educação e da saúde, conselhos tutelares, serviços de assistência social, entre outros, e deve ser feita uma única vez para que as vítimas não revivam a violência ocorrida a cada relato.

Já o depoimento especial, pelo que estabelece a lei, é o procedimento em que a criança ou adolescente são ouvidos perante a autoridade policial ou judiciária em caráter investigativo, já que é no sentido de se apurarem possíveis situações de violência sofridas. A lei também determina que tanto a escuta protegida quanto o depoimento especial devem ser realizados em ambiente acolhedor, que garanta a privacidade das vitimas ou testemunhas, com o dever de se resguardá-las de qualquer contato com o suposto agressor ou outra pessoa que represente a elas ameaça ou constrangimento.

"Em um cenário ideal, por essa lei, não se pode fazer perguntas indutoras de resposta, capazes de contaminar a fala dessa criança. E nem perguntas muito fechadas, com respostas do tipo 'sim' ou 'não'. Precisa prevalecer a revelação espontânea, idealmente, sem direcionamentos", diz a promotora.

Criança depõe em ambiente não acolhedor, com pessoas não treinadas

A promotora explica que a escuta especializada é resultado de ações articuladas entre educação, assistência, saúde, justiça e segurança pública —dependendo de onde é feito, de imediato, o atendimento à criança sob suspeita de abuso: no ambiente escolar ou em um atendimento médico, por exemplo.

"É necessário um trabalho de coordenação que hoje não existe. O resultado acaba sendo a criança que se senta no banco da sala de audiência como se fosse uma testemunha, naquele ambiente que já não é acolhedor e com um monte de pessoas não treinadas. É muito preocupante que, embora vigente desde 2018, essa lei ainda não tenha pegado como deveria", lamenta.

Pela lei, tanto a escuta protegida quanto o depoimento especial devem ser realizados "em local apropriado e acolhedor, com infraestrutura e espaço físico que garantam a privacidade da criança ou do adolescente vítima ou testemunha de violência". Embora a lei estabeleça também que a criança não tenha que repetir o depoimento, isso pode ser feito caso seja considerado imprescindível para o processo.

Treinamento e estrutura ainda são gargalos ao depoimento especial

A promotora admite que um dos grandes gargalos hoje para a aplicação da lei, no sistema de justiça, é a falta de mão de obra com treinamento para lidar com pessoas em situação de vulnerabilidade —pelo menos em um nível de capacitação permanente e abrangente à garantia do atendimento humanizado.

"A falta de treinamento é de fato onde emperra [para a efetividade da lei], mas há também a falta de estrutura para a implantação do depoimento especial", constata.

Em São Paulo, ela conta que todos os assessores e técnicos do Tribunal de Justiça foram treinados para tomada de depoimento especial desde 2018.

"No âmbito dos Tribunais de Justiça, para implantação do depoimento especial, precisa haver não apenas equipamentos de tecnologia, mas técnicos em número suficiente em todas as comarcas para a realização de depoimento especial. Em São Paulo, a situação é favorável, mas em muitos estados os tribunais não possuem essa estrutura que viabilize a execução do depoimento especial; é uma dificuldade", acrescenta.

De acordo com o CNJ, em julho de 2019, ao menos 23 tribunais de justiça (85% do total) contavam com espaços adaptados para entrevistas reservadas com as crianças — as chamadas salas de depoimento especial — cuja conversa é transmitida ao vivo para a sala de audiência.

"Desde 2012, por meio de uma parceria do CNJ com a organização não governamental Childhood Brasil, especializada em infância e juventude, o Conselho passou a oferecer cursos à distância para servidores e magistrados, focados no depoimento de crianças e adolescentes", informa o órgão. O objetivo é "esclarecer alguns mitos e verdades em relação ao depoimento especial, bem como os procedimentos adotados pelos juízes no uso desta técnica". Os mitos dizem respeito, sobretudo, à interpretação equivocada sobre o comportamento da criança durante o depoimento. Uma lista deles foi publicada pelo CNJ em seu portal oficial.

Sobre isso, a promotora paulista destaca que o que muitas vezes é considerado confusão mental ou forma inadequada de expressão de crianças em investigações de abuso, na realidade, é uma limitação de um repertório da criança, que difere, portanto, do repertório do adulto que a ouve.

"Na maior parte dos casos, o abusador está dentro de casa e ganha a confiança da criança, confia a ela esse 'segredo'. Dependendo da fase de desenvolvimento dessa vítima, ela pode não contar com facilidade em um depoimento [que sofreu abuso] porque não entende o que aconteceu. Ou acha que aquilo não é digno de nota, ou, o que é muito comum, foi pedido a ela o tal segredo", explica Renata.

"Vale lembrar que o agressor muitas vezes pratica o abuso, disfarçado de carinho, na frente de outras pessoas do convívio familiar, a fim de confundir a criança de que aquilo é consensual."

Casos nos quais o abuso evolui para a penetração são os que acabam sendo entendidos pela criança ou pelo adolescente como uma situação de fato abusiva. E é nesse momento, diz a promotora, que entram sentimentos de culpa e vergonha, mais difíceis de externalizar em um depoimento.

"A criança faz associações e usa um vocabulário que, muitas vezes, não fazem sentido para o adulto. Ela pode não ter uma linearidade de pensamento. Nós não estamos preparados para ouvi-la, mesmo que, quando ela finalmente fale a respeito, nos dê o máximo que ela consegue", diz Renata. "O resultado é que muitas vezes esse relato soará duvidoso, incrível, inverossímil. Mas, se somos treinados para ouvir aquilo, temos mecanismos para uma melhor responsabilização criminal futura."

Como é tomado o depoimento especial

Conforme a lei de 2018, o depoimento especial deve ser colhido em ambiente acolhedor, que garanta a privacidade das vítimas ou testemunhas, de modo a resguardá-las de qualquer contato com o suposto agressor ou outra pessoa que represente ameaça ou constrangimento. Durante o processo judicial, a iniciativa é transmitida em tempo real para a sala de audiência, preservado o sigilo, por um profissional especializado, que, se entender necessário, pode adaptar as perguntas à linguagem de melhor compreensão da criança ou do adolescente.

Além disso, o depoimento especial é gravado em áudio e vídeo, tanto a vítima quanto testemunhas da violência têm garantido o direito de depor diretamente ao juiz, se assim preferirem.

"Essa lei enxerga a criança como sujeito de direitos e com direito a proteção, para que ela tenha uma escuta que dê crédito a ela crédito. Com base nisso, precisamos, cada vez mais, fomentar a capacitação dessa rede", recomenda a promotora.

Projeto do MP lança guia para escuta especializada em outubro

Em outubro, o Ministério Público paulista vai lançar um guia operacional voltado a promotores de Justiça de todo o estado com orientações sobre como fomentar a rede de atendimento para a escuta especializada. A iniciativa é fruto de uma parceria com o Instituto Alana, organização da sociedade civil, sem fins lucrativos, voltada à garantia de condições para a vivência plena da infância.

"No âmbito da rede de proteção, precisa haver uma força motriz — e esse guia que estamos desenvolvendo apoiará o promotor de justiça para impulsionar a implantação da lei no município", explica. "Esconder esse assunto debaixo do tapete só interessa ao abusador e entrega o cordeiro na boca do lobo", enfatiza a promotora. "Por isso, precisa haver uma ação protetiva forte, com a criação desses espaços seguros para que o tema seja tratado sem tabu."