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Mulheres protagonizam um mundo em evolução


Psicanalista compara lar a microempresa e defende remuneração para mulher

Maria Homem, psicanalista, dá curso na Casa do Saber sobre o desafio feminino - Divulgação
Maria Homem, psicanalista, dá curso na Casa do Saber sobre o desafio feminino Imagem: Divulgação

Nathalia Geraldo

De Universa

08/09/2020 04h00

Apesar de parecerem "fatos", a pressão e a opressão a que mulheres são submetidas no dia a dia têm uma origem social definida, em que as desigualdades de gênero beneficiam umas e dificultam — e muito — a vida de outras. Como (e por que temos que) lidar com questões femininas como a culpa de mãe, agravada na quarentena, as interrupções no ambiente de trabalho e o cansaço provocado pela tentativa de corresponder à exigência de ter que dar conta de tudo?

A carga mental pesa. E é sobre esse tema e outros desafios femininos, como sobrecarga na pandemia, maternidade e sexualidade, que a psicanalista Maria Homem fala em curso oferecido a partir desta terça-feira, virtualmente, pela Casa do Saber.

Em entrevista para Universa, Maria Homem explica que a ideia do curso é resgatar a complexidade que as transformações da revolução feminina trouxeram para nossas vidas sem esquecer os desdobramentos emocionais e psíquicos que mulheres enfrentam hoje no Brasil e no mundo.

Veja os principais trechos da conversa.

Maria, você vai dar um curso sobre os desafios do feminino. Por que falar disso agora?

São dois motivos. O de fundo é que se tem uma transformação profunda social, histórica, subjetiva e econômica que é a revolução feminina. Nos últimos séculos e, sobretudo, nas últimas décadas, ocorrem transformações numa curva exponencial. Elas vão sendo gestadas.

Nesse curso, a gente vai situar o lugar da mulher na pré-modernidade, que era de não cidadã plena na polis, até o momento em que ela se torna um sujeito de direitos e deveres. Para comprar, vender, escrever, trabalhar, ganhar. Na macro história, temos isso, mas é uma luta que não está plenamente ganha. Afinal, não somos equivalentes em termos de direito. Temos os mesmos trabalhos dos homens, com menores salários.

Além disso, o segundo é o que a pandemia revelou: há uma sobrecarga sobre as mulheres, de forma tripla. Nos ocupamos mais da casa e dos filhos sem deixar de cuidar do trabalho, onde, para ser reconhecida no mesmo degrau que os homens, você precisa produzir muito mais. Assim como o negro e a negra fazem, considerando os recortes de classe, de raça e de gênero. Essas são as sobrecargas materiais, além da mental.

Você citou a tripla jornada. A pandemia impôs uma quarta camada à essa estrutura?

Há uma quarta camada, sim. As teóricas americanas começaram a trazer nas últimas décadas a definição do 'emotional label', o trabalho emocional ou carga mental. É quando o homem pode dizer que cuida da casa também, mas continua no 'Amor, onde está o detergente, onde tem pano?'. Tem um trabalho de gestão da mulher que era mais invisível, e que fica visível agora. E ele passa por dividir, porque não tem como a mulher não gastar energia com essa gestão.

Então tem que ser uma carga "remunerada". Ou a gente partilha, ou você me paga um salário para eu cuidar disso. As microempresas que são os lares precisam equacionar isso.

A Maria Fernanda [Cândido, atriz e sócia da Casa do Saber] trouxe um dado de que na Europa a primeira causa de divórcio é a divisão do trabalho doméstico. Pode parecer um detalhe, mas é o que está em jogo. Não é o 'quem lava a louça' ou porque o homem deixa a toalha molhada na cama. Mas é que isso significa uma postura de sujeito não adulto. É a naturalidade que o homem tem de ser servido e cuidado e a recusa das mulheres de estarem nessa posição.

As mulheres estão discutindo essa divisão com os homens? Há uma busca deles pelo debate?

As mulheres querem saber mais sobre isso e estão mais maduras para esse debate. Há o interesse porque é para seu próprio benefício. Mas para que tenha uma transformação sem tanto conflito, a conversa não precisa ser uma guerra destrutiva. Há uma parte, claro, em que a discussão talvez seja sobre privilégio, e que quando a mulher fala "eu não vou mais fazer sua mala ou sua comida", o outro não queira ouvir isso.

Mas, como qualquer repactuação ampla, há perdas e ganhos de todos os lados.

Neste movimento, talvez para os homens também seja interessante ter acesso ao universo que antes era visto como privilégio feminino, por exemplo, cuidar do bebê, brincar com o filho. Por isso, não vejo como interessante a gente fazer uma guerra dos sexos.

E vale dizer que ser privilegiado também tem um peso psíquico, chega uma hora que você fica confuso por estar sendo tão folgado, recebendo tão mais, vivendo em uma injustiça que começa a te dar trabalho. Acho que tem que chamar os homens para conversar, sim, sem ingenuidade. E isso se dá com base em um conceito muito contemporâneo, que é o pensamento coletivo, que abarca os núcleos familiares, os jovens adultos vivendo em casas compartilhadas. A ideia do 'junto com', do 'fazer pelo coletivo'.

Como sair desse lugar de constatação da opressão que as mulheres sofrem?

A primeira coisa é identificar. Depois, há várias estratégias dessa luta, sobretudo, de recusa a vários lugares. Porque o que temos agora são estudos que mostram como se dá a manutenção da mulher em espaços, como acontecem o assédio moral, o sexual, o mansplaining e todas as palavras em inglês que a gente usa.

Reconhecer primeiro, porque às vezes você não tem nem consciência de que está sendo vítima de gaslighting, porque é uma estratégia naturalizada e introjetada. Sabemos que uma mulher, por exemplo, é interrompida muito mais vezes do que um homem numa fala. E para sair dessa condição milenar, é preciso saber disso.

O segundo passo é interromper o processo, parar. O terceiro é instaurar um novo processo: convidar o outro a vir com você para fazer diferente. É aí que se dá uma dialética possível, transformadora.

A síndrome da impostora e a autossabotagem são características das mulheres?

Não é apenas feminino. É uma neurose humana, de todo mundo. Aliás, a figura do impostor é importante, no sentido de que estamos sempre comparando o nosso eu e o seu ideal de eu e que tem uma função ajuizadora dentro de você.

É quando você se cobra: 'Não fez ginástica hoje', 'Não terminou os livros', 'Não está bonito o suficiente'. Como diria Lacan, você tem uma voz em você que desgoza continuamente. Juntando esse imperativo, que é estrutural da psique, com o sistema produtivo e de vida que inventamos, que é o capitalismo, você sempre imagina que está aquém.

Porque essa é a lógica: se você se sente bem, não há consumo. Então, somos impostores e estamos sendo convencidos o tempo inteiro disso. Se não, as pessoas não ganham dinheiro. Por isso é que deveríamos repensar as bases.

As mulheres sofrem com essa lógica quando o autocuidado, por exemplo, é associado a consumo de produtos, cosméticos. Como pensar fora disso?

Há um imperativo maior sobre o feminino como estratégia de domínio dele pelo corpo e pela sexualidade da mulher. É uma maneira de ela sempre estar em dominação.

O "seja magra", por exemplo, é uma estratégia maravilhosa para fazer perder libido, horas, capital com técnicas para ser assim, forte, bronzeada.

São bilhões de dólares que circulam. E aí, esse corpo é dominado com poucos imperativos: beleza e juventude. E mais: em uma acepção de que a mulher deveria ser assim porque representaria a idade em que ela serve para reproduzir, para ser mãe.

Até por isso o corpo que passou pela menopausa é visto como o que está fora do mercado sexual - o que é falso. A mulher sente e usufrui do corpo até morrer. Por isso, há um movimento interessante de poder para homens e mulheres que estão podendo discutir isso às claras. Assim como tem 'black power', 'fat power', também teremos um 'old power'.

Nos últimos anos, as lutas feministas ficaram mais plurais, com mais narrativas sendo mostradas. Como você vê essas particularidades?

O desafio feminino é o deslocamento da vasta placa tectônica que a separa do lugar de objeto para sujeito, basicamente. Só que essa luta é multifacetada.

A psicanálise trabalha com mecanismo complexo de identificação. Freud diz que no funcionamento do grupo, a identificação é o laço emocional basal. Então, a gente só existe porque tem o outro. É a mais antiga manifestação de uma ligação afetiva a outra pessoa. Por isso, precisamos nos identificar com o outro e ter lugares. No entanto, não sei se teríamos uma identidade fixa. O processo de identificação é complexo, dialético, vulnerável e instável e isso é riqueza na nossa vida.

Então, digo que entre mulher e homem, eu me diria mais mulher; entre branca e negra, me diria mais branca. Mas, não posso me colocar colada a essas etiquetas 'identificatórias' como se isso dissesse a existência do meu ser; eu estaria me esvaziando. Isso significa que não é possível colocar todas as mulheres brancas em um bloco monolítico. Somos altamente singulares, assim como as negras, ricas, pobres. Então, há esse jogo entre identificação e singularidade, em que não se pode simplificar o debate e nem se esquecer das especificidades. Sem fazer com que o conceito rico de lugar de fala seja de exclusão do outro a priori.

O que é ser mulher hoje no Brasil?

É um desafio imenso, porque a gente está sob ataque. Essa onda conservadora e autoritária em grande medida também tem um efeito rebote do movimento de transformação social que acontece a partir da segunda metade do século 20.

A gente está maturando o projeto iluminista moderno, mas isso é muito insuportável para alguém entender que todos somos iguais perante a lei, independentemente do corpo, do desejo, do dinheiro, da religião, da cor. Isso é inédito.

Fala-se disso desde o fim do século 18, só que não se realiza. A gente vai e volta. Cada vez que avançamos muito, como nas lutas dos direitos civis, movimentos negros e feministas dos anos 60 a 80, a revolução sexual dos costumes, temos 'blacklash', de não aceitação. E de fantasias inenarráveis sobre o gozo do outro.

Daí vêm as ideias de que a universidade pública é só balada e droga [em referência à fala do então ministro da Educação, Abraham Weintraub sobre as instituições], mamadeira de piroca [em referência à fake news no período eleitoral]. Argumentos que são fake news.

Mas isso também é sobre a fantasia sobre o gozo do outro, que seria ilimitado. Vivemos nesses tempos em que a gente está projetando delírios. Como ter mais razão e menos emoção, como disse a [advogada e colunista] Gabriela Prioli? Como não atropelar o real?

Como projeta nosso futuro em sociedade?

Essa onda de ataque veio, mas não tem volta. Eu estou tranquila quanto a isso, porque pode prender, querer torturar agora, mas não daqui a 50 anos. É um movimento inexorável do mundo. A terra não é plana, o mundo não é cristão, o homem não é superior à mulher, nem o branco é superior ao negro. A tradicional família cristã acabou. Não dá para voltar atrás. Há muita angústia diante do mundo pré-moderno, mas tudo isso se dissolveu.

Agora, estamos analisando o que destruímos, e, sem dúvida, estamos vivendo um hiperindividualismo. Por isso, temos que refazer formas de coletivismo, fazendo tramas de amparo, refazer a empatia.

Sou mãe, dou aula e sou analista. E, por isso, acho que é um erro compreender a transformação ultramoderna como individualismo autocentrado e extremamente indiferente ao outro. Ela opera em um conceito de liberdade individual e civil, mas que é permeada pela existência do outro. Esse é o equilíbrio.

Essas questões tocam as mulheres de forma específica? E foram agravadas na pandemia?

Sem dúvida. Porque a quarentena foi uma revelação da nossa forma de viver. Sobre as desigualdades de raça, de classe, de gênero. Negros e pobres morrem muito mais do que brancos e ricos no planeta. Então, isso revela a iniquidade, em vários países. É uma questão de geopolítica, de gênero.

Se antes a gente tinha dúvida de coisas como miscigenação no Brasil, hoje sabemos que há uma polarização violenta. Se era visto como um país cordial, hoje entendemos que há um autoritarismo extremo. A gente sabe que era falso, mas 2020 colocou na nossa cara.