Aos 32, decidi tirar as trompas porque não quero ser mãe
A advogada cearense Patrícia Marxs, 34, sempre soube que não queria ser mãe. E isso já foi um problema. Primeiro, porque se relacionou com pessoas que queriam ter filhos, depois porque teve que enfrentar pressão da família e dos amigos, que diziam que não era normal uma mulher não desejar a maternidade.
Após terminar um relacionamento abusivo e começar a terapia, a advogada decidiu fazer uma cirurgia para a retirada das trompas de Falópio. O método é definitivo, o que significa que ela não poderá ser mãe de forma natural.
No Brasil, a Lei do Planejamento Familiar (nº 9263/96) diz que laqueaduras e cirurgias desse tipo podem ser realizadas em mulheres com mais de 25 anos ou com dois filhos vivos. Na prática, no entanto, muitas mulheres têm dificuldade de acessar o procedimento —o que, segundo a advogada, pode ser denunciado aos órgãos de controle, como a ANS (Agência Nacional de Saúde), no caso dos planos privados, e à ouvidoria do SUS (Sistema Único de Saúde).
Tramita no Senado o projeto nº 107/18, que tenta alterar a Lei do Planejamento Familiar para, entre outros pontos, retirar a exigência (válida ainda hoje) de que o cônjuge autorize a laqueadura ou vasectomia.
A seguir, Patrícia conta como foi o seu processo de tomada de decisão, as críticas e ameaças que recebe, e o esforço para que mais mulheres tenham o direito de decidir se e quando querem ter filhos.
*
A angústia de não querer engravidar
"Eu sempre vi a maternidade como algo que não dava para remediar nem negar, e isso me angustiava. Desde que eu era muito nova me perguntava 'será que não tem um jeito de não ser mãe?'.
Eu me casei aos 19 com um homem três anos mais velho que eu. A gente tinha uma vida confortável e então ele começou a dizer que queria muito ser pai novo. E eu tentava adiar isso, porque tinha dois estágios e fazia faculdade, então dizia que não era a hora.
Ele era uma pessoa agressiva, ciumenta e o relacionamento era abusivo. Vez ou outra eu percebia que meu anticonceptivo oral desaparecia, faltavam comprimidos e meu pai sempre me ajudava, saía tarde da noite para comprar para mim. Eu realmente não queria engravidar naquele momento.
Nessa época, eu era obesa, tinha 96 kg, e o ouvi do médico que não chegaria aos 29 anos por conta de problemas de saúde. Então eu comecei a pensar em fazer uma redução de estômago, mas meu marido me disse que eu tinha que escolher entre o casamento e a cirurgia, porque ele queria um filho naquele momento. Eu preferi correr atrás da minha saúde. Não sei como tive forças para deixar esse relacionamento, porque eu gostava muito dele. Eu era jovem, tinha uma concepção de família patriarcal conservadora, e ele foi o meu primeiro namorado. Mas eu queria a minha independência.
Passou o tempo, e namorei um advogado que também queria ter filhos. Eu ficava muito desconfortável com essa conversa e nos separamos. Aí eu conheci o meu atual marido, e ele me incentivava a perceber o que eu queria de verdade, tanto na profissão quanto em outras áreas. Aí ficou claro para mim que não queria mesmo ser mãe. E ele disse "é sua escolha, o corpo é seu".
A tomada de decisão
No começo, eu achei que desejasse a maternidade, mas que ainda não tinha chegado a hora. Entrei na terapia e descobri que realmente era uma escolha minha: eu não queria ser mãe. Sempre que a psicóloga me perguntava sobre esse assunto, eu rejeitava, não queria conversar.
As pessoas falavam coisas muito ruins [sobre quem não quer ser mãe] e eu achava que tinha que querer. Então ela me disse que eu não precisava ter um filho se eu não desejasse, que ela mesma não tinha tido. Foi o estalo que eu precisava, alguém me dizer que era ok não ser mãe, porque até então eu achava que era uma sentença.
Comecei a pesquisar em grupos de Facebook sobre métodos de longa duração e laqueadura. Coloquei um DIU hormonal e, por conta das cirurgias de reparação depois da bariátrica, não podia mesmo engravidar. Aí começou uma obsessão.
Eu tinha uma aversão grande à ideia de estar grávida. Como não menstruava por conta do DIU, fazia testes a cada 15 dias. Eu não conseguia ter relação sexual com medo de engravidar. Isso estava acabando com o meu relacionamento.
A minha ginecologista percebeu que eu estava obsessiva e um dia me perguntou: "Patrícia, você já pensou em fazer uma laqueadura?". Eu respondi que sim, que queria muito, mas achava que nenhum médico ia fazer em mim, porque eu não tinha tido filhos. Ela não fazia esse tipo de cirurgia, mas me ajudou a encontrar um médico que topasse. E quando isso aconteceu, demorei a acreditar, fiquei flutuando com a possibilidade de acabar com a angústia.
Eu queria tirar tudo logo, algo definitivo, então decidi não fazer a laqueadura (que tem 1% de possibilidade de reversão espontânea) e optei por retirar as trompas. O médico me disse: "Você sabe que se fizer isso só vai poder engravidar por meio de fertilização in vitro?". Eu disse que estava ciente e que podia adotar uma criança se mudasse de ideia. Eu penso que, se isso acontecer [de querer ser mãe no futuro], vai ser um problema para mim, não para o médico. Então eu que tenho que me preocupar, não ele.
Fiquei muito feliz depois da cirurgia, porque foi uma vitória grande. É como se, depois disso, eu tivesse tomado as rédeas da minha vida para seguir adiante.
Ativismo nas redes
Depois do procedimento, eu fiquei com vontade de falar para todo mundo que era possível, mas esperei um tempo e decidi criar um perfil no Instagram. Antes, mesmo sendo advogada, eu não sabia que podia pressionar o plano de saúde, reclamar na ANS [Agência Nacional de Saúde] e na ouvidoria do SUS para realizar uma laqueadura, caso o médico se negasse. Percebi que faltava alguém que traduzisse as leis e normas que a gente tem, porque há muito desconhecimento.
Então eu criei o perfil porque queria ajudar outras mulheres, mesmo as que já são mães e não querem mais engravidar. Porque eu vejo que em alguns grupos há uma disputa entre a maternidade e a não maternidade, e não é isso. A gente tem que somar forças à luta.
Eu sei que ser mãe é muito difícil, e admiro todas as mães, mas eu não quero. A gente é vista como um ser doente, já chegaram a me dizer que eu tinha transtorno mental por não querer ter filhos, que era amarga, egoísta e que ia morrer sozinha. As pessoas são muito cruéis.
Já recebi ameaças, pessoas dizendo que vão derrubar o perfil, que sou satanista, abortista e anticristo. Eu recebo e exponho tudo, guardo para tomar providências, se for necessário no futuro.
Hoje troco muita informação com as seguidoras, chegam casos difíceis e, por conta da pressão que fazemos, a mulher acaba conseguindo realizar o procedimento. É uma vitória, um trabalho de formiguinha, união de forças mesmo.
Tem muito estereótipo e é complicado dizer isso, mas eu me considero feminista, porque eu acho que ser feminista é estar ao lado das mulheres, honrar as que vieram antes de mim."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.