Em uma semana, Me Too Brasil já recebeu 30 relatos de assédio sexual
Um professor de audiovisual que assediava as próprias alunas em uma universidade, um professor de teatro que abusou sexualmente de alunas menores de 18 anos, um produtor de cinema que assediava sexualmente colegas da área em troca de não serem retaliadas em festivais do setor.
Esses são alguns dos predadores sexuais citados em pouco mais de 30 relatos de assédio e abuso sexual recebidos, em uma semana, pelo recém-lançado movimento Me Too Brasil, entre desabafos e denúncias apresentadas na plataforma online do grupo.
O movimento é a versão brasileira do Me Too dos Estados Unidos, no qual artistas de Hollywood denunciaram figurões da indústria do entretenimento como o produtor Harvey Weinstein e o ator Kevin Spacey. Em março passado, Weinstein foi condenado a 23 anos de prisão depois de ser considerado culpado de duas das cinco acusações de má conduta sexual que respondia na Justiça americana. O caso foi considerado por especialistas em mídia e direito, à época, um momento crucial do movimento #MeToo, marcado pela repreensão global ao assédio contra mulheres e que viralizou graças às primeiras acusações contra Weinstein em 2017.
No Brasil, o movimento conta com suporte do projeto Justiceiras, que engloba cerca de 3.800 profissionais voluntárias da medicina, do direito, da psicologia e da assistência social, por exemplo. As denúncias feitas no site do movimento têm sido direcionadas às profissionais do Justiceiras, iniciativa fundada pela advogadas Luciana Terra e Anne Willians e por Gabriela Manssur, uma das promotoras do núcleo de gênero do Ministério Público de São Paulo.
"O Me Too Brasil veio para amplificar as vozes das meninas e mulheres que sofrem assédio moral e sexual, e o projeto Justiceiras escutará essas vozes", diz Gabriela.
"O ponto em comum nos relatos é que os abusadores, sempre homens, usam de uma posição de poder ou hierarquia para cometer um abuso. E, quando uma vítima fala, várias outras querem falar", diz Luciana Terra, que é a líder nacional da área jurídica para o projeto, base operacional de apoio do Me Too Brasil.
De acordo com Luciana, cerca de 20% dos casos que já chegaram dizem respeito a situações de violência sexual — o restante, a maior parte, se refere a casos de violência física e psicológica. As situações analisadas no movimento dizem menos respeito a relacionamentos afetivos, de âmbito familiar ou doméstico, como as abrigadas pela Lei Maria da Penha, e mais a relações de trabalho ou estudo, por exemplo.
"Não se trata de um movimento só pela fala, mas para recebimento e encaminhamento dessas denúncias, com acolhimento e fortalecimento para as mulheres de fato saírem desse ciclo de violência e entenderem que não são culpadas pela violência sofrida", explicou a advogada. Segundo ela, é equivocada a ideia que muitas vítimas desse ciclo de violência ainda nutrem de que, expondo seus agressores, terão carreira ou estudos prejudicados. "Quem tem que se queimar no mercado é o predador sexual", diz.
Iniciado em março passado, o Justiceiras já contabilizou acolhimento e orientação a 1.693 meninas e mulheres vitimadas por diversos tipos de violência doméstica. Ao menos 13 dessas mulheres denunciaram um líder religioso que atuava no Brasil todo, em especial em Salvador, Aracaju e São Paulo. O caso, por ora mantido sob sigilo, já foi repassado para investigação do Ministério Público em São Paulo.
Questionada sobre a razão de o Me Too Brasil surgir apenas três anos depois da versão original, nos Estados Unidos, Luciana explicou que integrantes do grupo "já tinham isso [a criação de uma versão nacional no movimento] em mente há mais tempo, mas não tínhamos uma plataforma que atendesse essas vítimas".
"Não queríamos que fosse apenas uma hashtah [como o #MeToo nos EUA], mas uma ação efetiva. Deu certo o timing das Justiceiras com o Me Too e nos unimos", explicou.
Sobre a divulgação dos nomes dos predadores sexuais denunciados, ela adotou um tom de cautela: "As denúncias sempre são muito sigilosas, a não ser que as vítimas se sintam confortáveis para divulgar. Mas o nosso foco é sempre a vítima", definiu.
A advogada Isabela Del Monde, do Me Too Brasil, explica que cada denúncia é repassada a uma equipe multidisciplinar de profissionais do projeto.
"O objetivo é derrubar os predadores sexuais em massa como aconteceu com [o guru espiritual de Abadiânia] João de Deus, no Brasil, e com Harvey Weinstein, nos EUA. Mas sempre trabalhamos também na perspectiva de desejos das vítimas, que são as pessoas que enfrentam as consequências diretas dessas denúncias, com depoimentos, audiências, por exemplo", diz Isabela.
Me Too sobre absolvição no caso Mari Ferrer: "Chega a embrulhar o estômago"
Além de receber denúncias, o Me Too Brasil também repercute casos de denúncias que se tornaram públicas. A última ação desse tipo foi em relação ao caso da influenciadora Mariana Ferrer: nessa quarta (9), a Justiça de Santa Catarina absolveu o empresário paulista André de Camargo Aranha, acusado de estuprar a jovem em um beach club em Florianópolis (SC) em dezembro de 2018.
Para o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, as denúncias da jovem não tinham procedência.
Em um post no Instagram, o Me Too Brasil expressou "inconformidade" com a decisão judicial.
"O caso tinha todas as provas (vídeo e DNA do acusado no corpo da vítima e prova de conjunção carnal e o semên do acusado na calcinha da vítima) e mesmo assim ele foi absolvido. Isso revela tanto a seletividade do sistema penal brasileiro, que encarcera em massa a população negra, mas absolve um homem branco e com poder econômico e de influência mesmo diante de todas as provas e uma afronta a todas as vítimas e sobreviventes de violência sexual. Estamos aqui para atuar na transformação dessa cultura! Chega a embrulhar o estômago", diz o texto.
Orientações para denúncias: como agir?
Coordenadora do Núcleo de Gênero do MP-SP, a promotora Valéria Scarance dá algumas orientações a mulheres que enfrentam ou lidam com quem enfrenta violência.
"É muito importante a vítima não se sentir culpada: muitas mulheres ficam em silêncio porque se sentem responsáveis pelo abuso, mas o único responsável é o abusador —e não importa se a vítima bebeu, as roupas que usava ou onde estava. Sexo tem que ser consentido", define.
Outro aspecto, em caso de receio de se levar uma denúncia do tipo adiante, é não deixar de registrar boletim de ocorrência e solicitar medidas protetivas, solicitando sigilo quanto aos seus dados. "Ao comparecer na Delegacia de Polícia, a vítima deve levar todas as provas que tiver, como mensagens de texto, vídeo, relatório médico, nome de testemunhas que sabem de algo. Contudo, é importante dizer que, mesmo sem testemunhas ou marcas, o crime continua a existir e a palavra da vítima é uma importante prova", lembra.
Sobre as diferenças entre o assediador sexual e o predador sexual, Valéria acredita que o homem que pratica violência sexual pode ser considerado um predador. "Esse homem carrega dentro de si um padrão de superioridade e objetifica a mulher, como se ela fosse um corpo destituído de vontade, destinado a satisfazer homens. Esses homens não se preocupam com o sentimento, o medo e enxergam a negativa da mulher como um desafio, uma conquista. Por isso, é tão importante dizer que no nosso país existe lei e só existe relação sexual quando as duas pessoas querem", afirma.
Questionada se a pandemia pode ter impactado também em casos de assédio sexual, como ocorreu com casos de violência doméstica, a promotora afirmou que as estatísticas apontam uma redução dos índices de mortes de mulheres, bem como dos registros de ocorrências por violência. Por outro lado, houve o aumento pela procura de serviços de denúncia como 190 e 180.
"Quanto ao assédio sexual no ambiente de trabalho, há uma tendência de redução dos casos, em razão do isolamento e ausência de contato físico, até porque, assediadores escolhem suas vítimas e tomam precauções para que o fato não seja descoberto. Na era digital, as mensagens e imagens ficam gravadas e, assim, assediadores tendem a não se arriscar."
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