Inspirada em sua história, estilista cria gibi com super-heroína sem mãos
Aos quatro anos, a estilista especializada em vestidos de noiva Juliana Santos, 34, sofreu queimaduras que a fizeram perder metade da mão direita e os dedos da mão esquerda e ainda deixaram sequelas nos pés e várias marcas pelo corpo. Na recuperação, ficou mais de um ano internada e enfrentou 12 cirurgias reparadoras até completar 16 anos.
Por tudo o que passou, sempre foi considerada uma heroína pelos outros, mas ela mesma não se via dessa forma. Isso mudou quando, ao aliar o desejo de ter um projeto voltado para PCD (pessoa com deficiência) e a paixão pelo universo dos quadrinhos e fantasia, resolveu lançar um gibi infanto-juvenil, liderado pela guerreira Ju Sem as Mãos, no qual compartilha histórias de realização e conquistas de gente inspiradora e real que busca a inclusão.
"A ideia surgiu no final do ano passado, mas só nos últimos meses, como o trabalho no meu ateliê reduzido por causa da pandemia, consegui me dedicar. Já tenho dois volumes pré-escritos, o primeiro sobre mim e o segundo sobre a Milena Struck, Miss Universo Infantil 2019. Ela possui agenesia de antebraço (ausência de parte do antebraço e da mão).
"Agora estou em busca de uma editora para lançá-los", conta Juliana, acrescentando que durante todo o mês de setembro, em celebração ao Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, comemorado no dia 21), ela fará diversas ações em suas redes sociais para divulgar a causa e o novo projeto.
Sucesso no TikTok
Nos quadrinhos, ilustrados pelo cartunista Gabriel Rodrigues e revisados pela professora acadêmica Bruna Pinotti, a personagem principal é a própria estilista, que, ao passar por uma bola de fogo, ganha o poder de transformar as pessoas para o bem. A partir daí, vai atrás de outros como ela.
"Meu objetivo é mostrar que o deficiente não é super-herói só por causa da deficiência. Nós somos muito mais. Quero que todos vejam isso, e, principalmente, que as crianças e os adolescentes PCDs se sintam representados. Porque você não encontra muitos heróis deficientes nos quadrinhos, a não ser o Professor Charles Xavier, de X-Men, e o Demolidor", reforça.
Para dar mais visibilidade ao projeto, em março, Juliana começou a contar sua trajetória no aplicativo TikTok (@jusemasmaos), onde criou a série "Peripécias da Ju" -e, lá, já conta com mais de 230 mil seguidores. Com vídeos bem-humorados, alguns com mais de um 1,5 milhão de visualizações, tem atingido pessoas de todas as idades.
"Fiquei impressionada com o rápido retorno e a interação que acontece por lá. Muitos PCDs me escrevem dizendo que se inspiram em mim e que eu os ajudo a ficarem mais confiantes para lidar com suas deficiências. Também recebo mensagens de pessoas curiosas em saber mais sobre o meu dia a dia. Algumas até fazem perguntas que não deveriam, por exemplo, como escovo os dentes ou lavo a louça. Isso é ser capacitista, e é uma das coisas que desejo mudar com o gibi", afirma.
Juliana, que é casada e mãe do Miguel, 7, da Pérola, 4, e da Aurora, 1, acredita que dá para fazer isso por meio das crianças: "Quero mostrar que somos iguais a qualquer um, merecemos respeito e que, mesmo com nossas limitações, temos muito a oferecer. Educando os mais novos, certamente isso é possível".
Trajetória de superação
A estilista nasceu em Belo Horizonte, mas logo se mudou com a família para Nova Crixás, em Goiás. E foi lá que seu acidente aconteceu. Ela revela que até hoje não sabe exatamente como foi, já que logo em seguida foi abandonada no hospital pela mãe biológica.
"A primeira versão foi a de que eu tinha caído em uma pilha de esterco em chamas, algo bem improvável. Só mais velha, quando reencontrei alguns parentes, foi que ouvi uma história mais plausível: eu e minha irmã mais nova fomos deixadas sozinhas em casa e com uma vela acesa, que acabou caindo e causando o incêndio. Essa minha irmã, inclusive, tem uma queimadura no ombro, então é bem provável que tenha sido isso", diz.
Enquanto ainda estava no hospital, Juliana foi adotada por uma família de Goiânia, onde vive atualmente. Segundo ela, seu irmão mais velho fazia um trabalho voluntário no local e, quando soube do seu caso, contou à mãe. Ela, mesmo já tendo outros dez filhos, quis ter a menina na família.
Dois anos depois, esse irmão e a mãe adotiva faleceram, em um intervalo de de dois meses, então, ficou a cargo do pai que, ela garante, foi o grande responsável por torná-la uma pessoa segura e autossuficiente.
"Ele foi muito importante para que eu me aceitasse e desenvolvesse autonomia. Sofri constantemente bullying na escola, as crianças diziam que eu era radioativa, que minha mão parecia pata de cachorro. Eu chegava em casa quase todo dia chorando, mas ele me fez aprender a lidar com isso. Nunca passou a mão na minha cabeça, me tratou diferente ou deixou que fizessem as coisas para mim, pelo contrário", recorda.
O sonho era desenhar vestidos de noiva
Foi na infância que Juliana descobriu a paixão pela moda. Naquela época, fazia roupas para suas bonecas e, depois, na adolescência, passou a customizar as próprias peças. Profissionalmente, começou desenhando shorts, e fez um certo sucesso com eles em Goiás, mas o que ela queria mesmo era desenhar e costurar vestidos de noiva.
Em 2008, com poucos recursos, abriu o primeiro ateliê. Dez depois conseguiu se estabilizar e viver do seu sonho. Com mais de 850 noivas atendidas, inclusive fora do estado, Juliana garante estar realizada e, agora, mais pronta do que nunca para viver novas aventuras com a heroína Ju Sem as Mãos.
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