Condomínio contrata serviço de retirada de morador de rua para prédio em SP
Incomodada com a população em situação de rua que fica no entorno do prédio onde mora, na rua Amaral Gurgel, na região central de São Paulo, a síndica do condomínio contratou um serviço para orientar que essas pessoas não ficassem perto da entrada do edifício. Ela tomou a iniciativa após moradores solicitarem uma providência e assinarem abaixo-assinado concordando com a contratação. Foram 33 assinaturas de um total de 90 apartamentos.
No balanço do condomínio, consta o nome de uma pessoa identificada como Alexandre Silva e, ao lado, "Serv retirada moradores rua - 400,00". O valor será dividido entre os cerca de 90 apartamentos do imóvel, segundo a administradora do condomínio. A Prefeitura de São Paulo diz que a atitude é irregular e que, já ciente da contratação do serviço, encaminhou denúncia ao Ministério Público de São Paulo.
O condomínio fica em frente ao Elevado João Goulart, conhecido como Minhocão. O local concentra grande quantidade de pessoas em situação de rua. O prédio fica também a dez minutos da região paulistana conhecida como Cracolândia, onde pessoas se concentram para consumir drogas.
No Brasil, quase 222 mil pessoas vivem em situação de rua, segundo dados divulgados pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em março deste ano. Do total, 11% estão na cidade de São Paulo, onde o Censo de 2019, realizado pela Secretaria da Assistência Social, da prefeitura, apontou que 24.300 pessoas vivem nessa situação. Desses, 52% estão nas ruas, os demais em abrigo.
Moradores do prédio, que conversaram com a reportagem de Universa sob condição de anonimato, contaram que há dois meses foi deixado um abaixo-assinado na portaria do edifício —ao qual Universa teve acesso— e que deveria ser assinado por quem estivesse, segundo o texto, "de pleno acordo com a cobrança de taxa extra junto a cota condominial, para a contratação de segurança particular para manter a segurança do local e o bem-estar dos moradores deste condomínio".
O documento, assinado por 33 pessoas que concordaram com a cobrança, de um total de 90 apartamentos, aponta ainda que essas pessoas em vulnerabilidade social, além de sujeira, geram desvalorização no preço dos imóveis da região.
Uma das moradoras disse conhecer Alexandre Silva, citado na cota condominial. Ele seria uma pessoa de idade e um conhecido dos moradores, não um segurança. "Ele andava por aqui de bicicleta, mas nem tenho visto mais. Por esse valor tão barato assim, jamais daria para contratar um segurança profissional", observa a moradora. A contratação de segurança privada para uma rua custa em média R$ 2.011,25, segundo o site Zap Imóveis.
Outra moradora conta que, numa conversa telefônica com a síndica, questionou o nome da empresa de segurança. Segundo ela, a síndica disse que não seria uma empresa, mas uma pessoa que ia tirar os moradores de rua "do jeito dela".
"Intenção foi das melhores"
Universa questionou a administradora do edifício e a advogada que representa o prédio sobre qual seria a função do profissional contratado, já que o abaixo-assinado fala em "segurança" e a cota condominial usa o termo "retirada de morador de rua".
A administradora de condomínios Samluz informou, por email, que cuida apenas da parte contábil do condomínio: "Contabilizamos os documentos da forma que são emitidos". Ou seja, a empresa teria recebido a descrição do serviço e a lançou no documento. E explica ainda que não houve rateio extra para o pagamento da despesa e que ela foi paga pela conta ordinária do condomínio, que é um gasto para a manutenção.
O email enviado pela Rubio Alves Associados Advogados começa explicando que "em virtude dos problemas com a atual pandemia, o número de moradores de ruas e usuários de droga na região do condomínio praticamente triplicaram". Em seguida, o texto esclarece que "após solicitação de providências por parte de inúmeros moradores, a síndica contratou 'informalmente' um ronda para conversar com os moradores de rua que estavam dormindo em frente ao condomínio e fazendo suas necessidades fisiológicas na porta do edifício".
A reportagem perguntou se o profissional é um segurança registrado, mas não obteve resposta.
O email destaca ainda que a síndica tem conhecimento de que nenhum cidadão comum possui "poder de polícia" para remover "à força" pessoas que ali estejam, mas "nada impede que ela remunere um prestador de serviço para conversar com essas pessoas para que não fiquem na portaria do edifício". O texto destaca também que "esse rondista não tem ordem para remover à força qualquer pessoa".
Fala ainda que o abaixo-assinado foi elaborado "sem o conhecimento e orientação desse jurídico" e que, assim que o tema for levado para discussão em assembleia, a contratação informal do prestador de serviço será regularizada. "Até onde sabemos, o rondista não é para retirar os moradores de rua, mas sim, para manter a entrada livre dessas pessoas.", informa.
"Sinceramente, acredito que a síndica só procurou resguardar a segurança de toda a coletividade condominial contratando esse rondista para conversar com essas pessoas, pois os condôminos reclamam da segurança, da sujeira, do cheiro, da bagunça etc., mas não podem fazer nada."
"Não estou validando o que a síndica fez, mas sinceramente a intenção dela foi das melhores, visando o bem da coletividade condominial que ela representa. Agora, se está errado, vamos resolver juntos", informa o email, assinado com o nome do escritório.
Responsabilidade da prefeitura
O advogado Marcio Rachkorsky, especialista em condomínios, diz compreender que ninguém quer ter pessoas em situação de rua na porta de casa. E afirma que recebe inúmeros pedidos de moradores de prédios que administra, no bairro nobre de Higienópolis —próximo ao edifício da Amaral Gurgel—, para "limpar a rua" e "tirar esse povo daqui". Mas a atitude correta em situações como essa, ele diz, é acionar os órgãos públicos.
"Se for contratado um segurança, tem que ser com uma empresa, registrado em carteira e com contrato de prestação de serviços. E esse segurança não pode tocar nem expulsar ninguém, mas sim controlar o acesso e cuidar do entorno [do imóvel] preventivamente, com jardim, limpeza, e proteção perimetral [que é colocar cerca elétrica, por exemplo]", explica.
"A gente entende que é um problema social, mas o condomínio não tem que fazer nada a não ser acionar os órgãos públicos. A abordagem de pessoas em situação de rua é trabalho de assistente social, que tem preparo técnico para falar com essas pessoas. Fora isso, dá margem para acontecer coisa pior, como agressão. Isso é muito grave."
O advogado criminalista Pedro Martinez, das Comissões de Direitos Humanos e de Diversidade Sexual da OAB-SP, endossa o argumento de que somente a prefeitura pode prestar atendimento a essa população e que é esse órgão que se deve buscar para tratar da situação de pessoas em vulnerabilidade social. Ele lembra ainda que ONGs com trabalho voltado para essas pessoas também podem ajudar a orientar moradores desses prédios.
Quanto à configuração de um eventual crime, Pedro explica que é preciso analisar como o homem contratado está, de fato, agindo e se há alguma violência na atividade. Mas diz que, em sua avaliação, na contratação do serviço está evidente um ato discriminatório.
"Os moradores se sentem ameaçados pelo simples fato de a pessoa em situação de rua estar lá, sendo que é direito dessa população ficar na calçada. Por que não reverter então esses R$ 400 em comida ou outro tipo de ajuda para eles, por exemplo?"
Ministério Público acionado
Procurada, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania informa, por email, que não é permitido pagar ou cobrar para retirar pessoas de espaços públicos, como calçadas, nem orientar ou intimidar uma pessoa sobre o local público em que deve permanecer. E que, nesses casos, deve-se acionar o serviço de abordagem social da Prefeitura Municipal de São Paulo por meio do telefone 156.
A Prefeitura comandada por Bruno Covas (PSDB) informa que já havia recebido denúncia sobre a contratação do serviço incluída no condomínio e a encaminhou à Coordenação de Políticas para População de Rua, para "apuração e adoção das providências legais cabíveis". Mas não descreveu quais seriam essas medidas.
A reclamação, segundo o órgão, também foi encaminhada ao Ministério Público de São Paulo. O promotor Eduardo Valério (Direitos Humanos na área de Inclusão Social) informou à reportagem de Universa que solicitou informações à síndica sobre essa contratação. Por áudio, ele lembra que apenas o poder público pode abordar pessoas em situação de rua que estejam em endereço público e oferecer encaminhamento para redes socio-assistenciais do município.
"Jamais um particular pode remover pessoas em situação de rua e, se isso acontecer, o condomínio fica sujeito à responsabilização civil e administrativa. E a pessoa que contratar alguém para fazer isso e a que fizer ficam sujeitas à responsabilização criminal. Existe o direito constitucional de ir, vir e permanecer. Portanto, é crime de constrangimento ilegal ou mesmo de sequestro no caso de violação desses direitos fundamentais."
A prefeitura informa ainda que denúncias do tipo devem ser encaminhadas para a Ouvidoria de Direitos Humanos da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania.
Déficit de atendimento
No estudo População em Situação de Rua em Tempos de Pandemia: Um Levantamento de Medidas Municipais Emergenciais, publicado em junho, pesquisadores do Ipea alertam para o aumento de pessoas sem lar durante a crise econômica acentuada pela pandemia da covid-19, por causa do desemprego e do desaquecimento da economia.
Debruçados sobre os dados do Censo Suas 2019 (Censo do Sistema Único da Assistência Social), eles alertam que até aquele ano o país contava apenas com 228 Centros POP (Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua), onde são ofertados serviços para pessoas em situação de rua, espalhados por 200 municípios e concentrados na região Sudeste (46,5% das unidades).
Em 2017, uma análise feita pelo Ministério da Cidadania mostrou que, dos municípios com mais de 100 mil habitantes e de regiões metropolitanas com 50 mil ou mais, 31,3% deles não contavam com algum tipo de serviço voltado para a população em situação de rua.
Os pesquisadores falam ainda que os Creas (Centro de Referência de Assistência Social), que também atuam no atendimento da população em situação de rua e cuja existência é condição para que os municípios sejam elegíveis ao cofinanciamento federal para os Centros POPs, apresentam um déficit de 242 unidades em todo o país, principalmente no Sudeste, onde ainda faltariam 131 unidades para garantir a oferta adequada segundo as orientações técnicas emitidas pelo então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
"Cabe destacar a preocupação com os efeitos que a pandemia pode causar em termos do aumento do contingente da população em situação de rua, com a intensificação da desocupação e do desaquecimento econômico no curto e médio prazo. Para enfrentar esse cenário, além de ações emergenciais, o fortalecimento do sistema de proteção social se impõe como meio a estabelecer estratégias para alterar as condições de vida das pessoas atualmente em situação de rua e ainda evitar que novos grupos vulnerabilizados se somem a essa população", informa o relatório do Ipea.
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