Sem dinheiro, mulheres contam como é voltar a morar com os pais na pandemia
Além do medo de se contaminar, ficar doente ou perder uma pessoa querida, a pandemia do novo coronavírus causou não só revoluções no nosso jeito de viver e de nos relacionarmos, mas também nas finanças de milhares de pessoas. Segundo o IBGE, negros e mulheres foram os mais afetados pela covid-19, e muitas delas, já com uma vida estável e independente, perderam o emprego e estão tentando se reinventar.
Para isso, fizeram um movimento contrário: voltaram para a casa dos pais. "Não existe um problema nisso, porque os atravessamentos da vida acontecem. Porém, psicologicamente, essa volta mexe com as pessoas, e tudo se intensifica: nosso modo de ser, nossas atitudes e emoções", afirma a psicóloga Daniela de Oliveira, ambulatório de medicina e estilo de vida do Hospital das Clínicas de São Paulo. "Para os nossos pais, por mais que eles nos olhem como adultos, sempre seremos alguém que precisa de cuidados. Isso é algo da vida. Para quem passa por isso, pode vir com uma maior ou menor dificuldade, já que essa situação nos surrupiou nosso cotidiano e a vida como ela era", explica ela. Leia, a seguir, confira a história de quatro mulheres que estão vivendo essa situação.
"FOI UM PROCESSO DIFÍCIL E DOLORIDO"
Mudanças e novas experiências sempre fizeram parte da vida da paraense Flávia Dias, de 30 anos. A única que ela ainda não havia experimentado, no entanto, veio de uma forma pouco agradável com a pandemia. "Moro sozinha há mais de dez anos, tenho duas graduações, fiz MBA e um mestrado no Rio, já trabalhei em vários lugares, mas essa é a primeira vez que fui demitida. Era coordenadora de conteúdo digital em uma agência de publicidade em SP e fui desligada em maio. Os donos alegaram que iriam fechar a agência pra tomar outros rumos na vida, mas todo mundo entendeu que foi por causa da pandemia", fala ela.
Seu salário era por volta de 9 mil reais mensais, e no primeiro mês sem emprego, Flávia diz ter mantido seu padrão de vida, com direito a muito pedidos de comida pronta e cuidados estéticos, sem ter se dado conta, ainda, do que havia acontecido, em uma vibe "férias". Dois meses depois, conta, a situação começou a piorar quando não conseguir se recolocar no mercado. "Em agosto, voltei para a casa dos meus pais, em Belém, e precisei pedir ajuda para a minha mãe. Ela disse para que eu não contasse ao meu pai que era algo definitivo, porque provavelmente ele iria me culpar, me chamar de irresponsável por estar sem emprego. Foi um processo difícil, dolorido. Tive uma sensação de fracasso ao voltar para a casa deles", reflete, ainda digerindo a nova vida que começa a se desenhar à sua frente. Agora, ela está em São Paulo e se prepara para vender a mobília e entregar o apartamento no qual morava. Sobre o futuro, por enquanto, há bem mais dúvidas do que certezas. "Sei que preciso entender o que eu quero, qual cargo posso procurar, salário, etc. Meu maior medo é seguir na casa dos meus pais e estagnar na carreira".
"ERA ISSO OU NÃO TERIA COMO SUSTENTAR MEU FILHO"
Ao contrário de Flávia, a vendedora de consórcio de carros Tamiris Dalcol, de 27 anos, não tinha planos de morar sozinha. Mãe solo de Claudio, de 4 anos, ela tomou a decisão de ir embora da casa dos pais, em São Miguel Paulista, extremo leste da capital, após a separação deles, no fim do ano passado. "Eles sempre viveram uma relação abusiva, meu pai tem problemas com álcool, inclusive, já me agrediu fisicamente, então, assim que minha mãe saiu de casa, resolvi fazer o mesmo, já que estar perto dele afetava demais a mim e ao meu filho", conta.
Com o pouco dinheiro que tinha guardado, alugou e mobiliou um apartamento, mas a mudança durou pouco mais de um mês após a chegada da pandemia. "As vendas caíram e a empresa precisou se adaptar. O meu salário garantido, sem comissões, era de 1.045 reais, o que não dava nem para pagar o aluguel. Tive que tomar a decisão de voltar para a casa do meu pai em abril, mas pouco antes disso, minha irmã e minha avó decidiram interná-lo em uma clínica de reabilitação. Então, quando voltei, a casa estava vazia. Infelizmente, em junho, por falta de recursos, ele saiu e voltou para casa. Entrei em choque quando soube. Mas era isso, ou não teria como sustentar o meu filho", explica Tamiris.
Viver com o pai novamente, segundo ela, é estar sob constante estresse e ter de lidar com crises de ansiedade em uma rotina com altos e baixos. No entanto, a vendedora diz ter tomado a melhor decisão, já que descobriu recentemente estar na próxima lista de cortes da empresa. "Como meu pai não tem tanto dinheiro, já não sai mais para beber todos os dias como antigamente. Mas é difícil, porque tenho duas irmãs, e elas largaram toda a responsabilidade com relação a ele, nas minhas costas".
Por enquanto, Tamiris não consegue fazer planos para voltar a morar sozinha, mas garante ser capaz de se reerguer, como sempre fez. "Nunca dependi de ninguém, trabalho desde os 14 anos. Sei que trabalho registrado em carteira é difícil, então já estou procurando alguns cursos na área de beleza, quem sabe fazer unhas, micropigmentação labial... A gente é mulher e sempre dá um jeito, dança conforme a música", fala ela.
"TENHO CERTEZA QUE HAVERÁ UM AMANHÃ"
Com um trabalho que envolve majoritariamente muitas pessoas, eventos e aglomerações, a fotógrafa Helena Yoshioka, 30 anos e 8 deles longe da casa dos pais, precisou dar uma pausa e repensar como seriam seus dias sem trabalhar. Parada desde março, apenas com um ou outro trabalho pontual, tomou a decisão de voltar para casa dos pais em Cotia, na grande São Paulo. "Não foi uma coisa tão dramática, mas não imaginei que seria tão difícil. Minha vida está completamente suspensa, sem rotina. Falta meu espaço, minha autonomia, enfim, tudo", afirma.
Apesar disso, ela conseguiu encontrar algumas vantagens no meio do seu caos particular: dormir mais, mudar os hábitos alimentares para melhor e criar uma relação mais íntima com os pais. "Quando você sai cedo de casa, acho que muitas coisas ficam mal-entendidas ou guardadas na memória de um jeito não muito realista. Em um primeiro momento, quis muito me atualizar sobre como realmente são meus pais, os costumes eles, e atualizá-los sobre mim", diz. Mesmo assim, o passar dos dias trouxe angústia e também a sensação de fracasso na conquista da sua independência. "Sempre que vem esse pensamento, eu tento me lembrar que é só uma fase, uma escolha 100% racional e financeira. Existiu muita maturidade, porque tenho certeza que haverá um amanhã depois da pandemia", garante.
A certeza, no entanto, é algo que falta à editora e pesquisadora carioca Sabrina Lima. Vivendo em Porto, Portugal, ela era freelancer em uma produtora espanhola, mas pouco antes da pandemia, o trabalho acabou. Em janeiro, veio ao Brasil para passar dois meses, e quase não conseguiu voltar para casa. "Quando finalmente voltei, estávamos em estado de emergência. Comecei a fazer contatos, vendo todo mundo tentando se readaptar, mas não consegui outro trabalho fixo. Fiquei dois meses no meu apartamento, mas aí não deu mais. Nunca fiquei tão sem grana e sem trabalho por tanto tempo", conta.
Por isso, não teve dúvidas; colocou suas coisas em um depósito e pediu ao irmão, que mora com a mãe deles próximo a Lisboa, para buscá-la. "Fui morar com eles. Dormia na sala, e foi um período reconfortante, porque não precisei passar por toda essa crise sozinha. Não é um mar de rosas viver tão intensamente com a família, mas mesmo assim foi bom", fala Sabrina, que agora, mesmo após seis meses sem emprego, conseguiu alugar um quarto. "O que me cansa é a situação de incerteza, mas não me culpo. Sei que é uma situação mundial", finaliza.
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