Ofensa, traumas e invisibilidade: como albinas estão recuperando autoestima
Beleza rara, que se destaca e é vista ao longe, e que, depois de muito tempo, aprendeu ver o pôr do sol como seu melhor amigo. É assim que hoje Josiane dos Santos, 38, se define, após passar mais da metade da vida enfrentando sozinha a dor do preconceito por ser albina.
Ela acorda todos os dias tentando cicatrizar as marcas físicas e psicológicas que a doença que provoca mutações genéticas lhe causou. Nascida em Vitória, ela conta que, na infância, passou por situações difíceis. "Ainda me lembro das vezes em que, na escola, fui chamada de diabo loiro, cobra-cega, entre outras ofensas. Aos 7 anos, além da deficiência visual, minha pele feria muito em decorrência da sensibilidade constante, então eu ia para a aula com algumas manchas de sangue na roupa e ninguém entendia, achava que era descuido", conta.
O albinismo é uma desordem genética, que causa uma produção diminuída ou ausente da melanina - o pigmento que dá cor à pele, formação e funcionamento dos olhos e proteção da cóclea, uma região do ouvido responsável pela audição, e tem a função de proteção ao dano causado pelo ruído.
"Fui muito isolada e enfrentei problemas dentro e fora da escola. Fui impedida de fazer muitas coisas, principalmente ir à praia, não sabia que existia um horário em que não me machucaria", diz Josiane.
Para que as novas gerações não passem pelo que passou, Josiane criou um coletivo chamado Albinos ES, que conta hoje com 25 membros. A ideia é que homens e mulheres se apoiem, troquem experiências e recebam atendimento gratuito de médicos e psicólogos parceiros.
"Eu encontro muitas mulheres com albinismo cuja autoestima está no chão. Muitas não gostam de se arrumar, cuidar da aparência, pois acreditam que podem chamar ainda mais atenção. O albinismo afeta a gente de uma maneira que nos diminui. Uma de nossas companheiras está em depressão e passa por acompanhamento psicológico e conversas em grupo. Sempre damos dicas, desde maquiagem até como resgatar dentro de si a autoestima", conta.
Enclausuramento
Foi também com muita luta que Bianca Cristina Paulino, 27, conseguiu recuperar o amor-próprio ainda na adolescência. Ela mora em Potim, no Vale do Paraíba (SP), e acredita que crescer com albinismo em uma cidade de 25 mil habitantes foi um processo enclausurado.
"Quem me vê agora sendo feliz e engajada, não imagina a minha infância. Fui criada sozinha, com minha mãe e avó, que, desde meu nascimento, sabiam da minha condição e, por medo da reação das pessoas, me superprotegeram. Não brincava na rua, quase não tinha amigos e era muito tímida", conta.
Por causa do desconhecimento da família em como lidar com a doença, Bianca só ingressou na vida escolar aos 11 anos. "Foi, então que meu castelo se quebrou. Ouvia apelidos que me faziam chorar. Fiquei anos sem entrar em qualquer supermercado, por exemplo, depois de sofrer bullying aos 15 anos. É doloroso e impactante", lamenta.
Bianca não aceitava a aparência e tentou algumas técnicas para se sentir melhor. "O grande problema era o cabelo, achava ele horrível, passei 12 anos usando química para alisar. É muito difícil lutar contra algo que é o padrão que a sociedade impõe. Em 2010 não tínhamos essa liberdade de hoje e eu queria sempre me adaptar ao outro, à onda", explica.
"Não temos identificação entre as blogueiras, por exemplo. Nós albinos, de certa forma, somos invisíveis. Se eu tivesse uma referência na adolescência, talvez minha vida tivesse sido outra. O que me ajudou foi a terapia que fiz pelo SUS, onde me libertei", lamenta a educadora social que hoje procura ajudar outras meninas por meio de conversas em suas redes sociais.
Empresas precisam de olhar inclusivo
Aos 16, enquanto construía um lugar seguro psicologicamente para sua autoestima, Josiane teve um relacionamento no qual o namorado não a assumia publicamente. "Quando tivemos uma filha, todos ficaram sabendo e minha casa na comunidade se encheu de gente, parecia que tínhamos uma artista entre nós. Todos só queriam ver a cor dela, que no fim das contas nasceu morena como o pai. Foi a curiosidade do bairro todo", comenta com um sorriso de quem hoje leva o assunto com mais leveza.
Mais tarde, no mercado de trabalho, obteve bons resultados até ser promovida. Mas, em seis anos de empresa, tentava todos os dias provar que não tinha nenhum tipo de problema para desempenhar suas funções, apesar de enxergar menos de 10% e ter consultas periódicas com dermatologista.
"Por me esconder, desenvolvi crises de ansiedade sem ninguém perceber", lamenta. Josiane foi demitida após uma cirurgia para correção de estrabismo, pois, segundo ela, a empresa acreditava que a limitação da visão pudesse comprometer o trabalho. "Essas coisas mexem com a gente, porém hoje entendo que as pessoas também não eram educadas para lidarem com isso. Precisamos mudar este pensamento na sociedade", explica.
Estima-se que 10 mil pessoas sejam albinas no país
De acordo com Carolina Marçon, dermatologista coordenadora do Programa Pró-Albino da Santa Casa de São Paulo, além do preconceito sofrido pela falta de conhecimento sobre essa condição, o próprio albino às vezes desconhece como lidar com ela.
"Nasce albina a pessoa que tem um gene vindo do pai e um da mãe e só se manifesta quando os dois estão juntos. Com a falta de melanina e em decorrência da baixa proteção aos danos causados pelos raios solares, os albinos têm sérios problemas na pele e alta suscetibilidade ao câncer precoce, que pode começar ainda bem jovem, com 20 ou 30 anos e é a maior causa de morte e comorbidades nesta população", diz Carolina. "Por isso é tão importante a conscientização, para que tenham cuidados e acompanhamento periódico e esse câncer seja removido, principalmente em crianças."
Onde buscar ajuda
O Programa Pró-Albino oferece prevenção, detecção precoce e tratamento das doenças dermatológicas e oftalmológicas gratuitos pelo SUS, desde 2012, e atende hoje 350 pacientes, sendo 30% crianças. De acordo levantamento da Santa Casa, no Brasil, estima-se que haja cerca de 10 mil albinos -pelo menos 1.000 no Estado de São Paulo.
Outra fonte de informações e apoio ao albino é o Instituto Nóbrega, que tem sistematizado informações para influenciar políticas públicas, como o fornecimento de protetor solar para prevenção medicamentosa.
O Brasil conta também com a Apalba (Associação de Pessoas com Albinismo na Bahia), que atende 570 pessoas diretamente, vindas de 100 municípios do Estado. Fundada há 20 anos, começou com o objetivo de cuidar da fragilidade da pele dos albinos em um dos estados mais ensolarados do país.
Composta por sua maioria de mulheres, a associação faz reuniões mensais, onde contam suas experiências e expõem a maneira como são tratadas pela sociedade, seus anseios e vivências como uma pessoa com albinismo. "A associação tem o trabalho de levar à mulher e à criança palavras e abordagens positivas, auxiliando as mães a lidarem com a condição das filhas e elevando a autoestima de ambas", diz Maria Helena Machado Santa Cecília, assistente social, membro da comissão de ética da Apalba.
"Elas chegam se achando muito feias e nós tentamos mostrar que o bonito é o que sentimos dentro da gente, não o que os outros veem. Essa troca entre acaba contribuindo e mudando esse cenário, tanto que mulheres que entravam nas reuniões mudas e saíam caladas e que hoje são palestrantes. Elas desenvolvem a autoconfiança e evoluem", conta Maria Helena.
Segundo estudo internacional realizado pelo Instituto Nacional de Saúde, dos Estados Unidos, uma em cada 20 mil pessoas em todo o mundo nasce com albinismo e estima-se que uma a cada 70 carregue os genes associados à doença, mas não são afetadas pelas mutações, independentemente de etnia, sexo ou classe social.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.