Do preconceito à libertação: negras contam como foi assumir fios brancos
Este foi um dos anos de maior destaque para os cabelos brancos: impossibilitadas de irem aos salões de beleza, muitas mulheres deram uma pausa no processo de coloração dos fios e descobriram, em frente ao espelho, suas versões naturais. Famosas como Preta Gil, Samara Felipo e Susana Alves mostraram este processo através das redes sociais. Hoje, ao buscar pela hashtag #grisalhas no Instagram é possível acompanhar diferentes mulheres passando também por esta descoberta. Um fato, no entanto, chama a atenção: a maior parte delas é branca e tem cabelos lisos ou ondulados. Por que as mulheres de cabelo crespo ainda são minoria entre o time das grisalhas?
De acordo com a cabeleireira Ana Regina Faria, técnica da Embelleze, negras e pardas costumam demorar mais a desenvolverem fios brancos, devido a maior concentração de melanina no corpo. "Em geral, acontece quando estão com mais de 50 anos", explica. No entanto, outra questão, também explica mulheres negras que assumem cabelo branco serem minoria: o racismo.
A técnica de enfermagem Irlana Ferreira, de 36 anos, é exemplo disso: desde nova precisou lidar com o surgimento dos grisalhos e pintá-los, principalmente por influência da mãe. Já na vida adulta, satisfeita com sua versão natural, decidiu deixá-los crescer, mas acabou pintando após escutar comentários maldosos na clínica médica particular onde trabalhava. Se até mesmo as mulheres brancas sofrem preconceito pela decisão, as negras precisam ainda lidar com uma carga ainda maior de críticas. A seguir, três delas contam suas histórias:
"Não via referências, então decidi ser uma"
"Comecei a ter meus primeiros fios brancos bem cedo, com aproximadamente 15 anos. Eles surgiram em uma mecha na parte da frente. Logo passei a pintar aquele pedaço, por influência da minha mãe, que se preocupava com a minha imagem. O problema é que meu cabelo cresce rápido demais e com aproximadamente oito dias eles já se tornavam visíveis novamente, então precisava repetir o processo. Aos 23 anos, engravidei e fiz a minha primeira transição capilar: deixei de alisar os fios e passei a usá-los crespos. Naquela época, não era comum que mulheres usassem seus cabelos assim. Sofri preconceito até dentro de casa: minha mãe, que é branca, se preocupava se algum dia eu conseguiria um emprego por usá-lo natural.
Mas a verdade é que sempre fui uma pessoa à frente da minha época e não dei tanta importância. Em compensação, não abri mão da tinta. E, com meu cabelo crespo, a sensação era ainda pior, porque, pelo volume, precisava usar até três tubos de tinta para conseguir cobrir completamente os brancos. Foi somente em 2018 que, por um descuido, passei mais de 15 dias sem pintar e vi a mecha da frente tomar forma. Eu e meu marido achamos o efeito bem bonito. Por um conselho dele, decidi que assumiria os brancos de vez.
Naquela época, ele estava grande, chegando até o meio das costas. O contraste entre os dois tons começou a me incomodar e cortei boa parte dele. Ainda assim, fui julgada no meu local de trabalho. Na época, trabalhava como técnica de enfermagem em uma clínica oncológica. Tanto os pacientes como os meus colegas insistiam para que eu pintassem, porque diziam que parecia desleixo. Os comentários foram começando a me incomodar e voltei para a tinta. Quatro meses depois, quando saí do emprego, fiz uma mudança radical. Deixei que a raiz crescesse, fui até o salão e adotei o estilo 'joãozinho'. Aquela foi a primeira vez em que o vi todo branco. Quando cheguei em casa, meu marido amou.
No entanto, ele foi o único a me apoiar. Aos 33 anos, ouvia críticas de que os grisalhos envelheciam minha imagem. Hoje, aos 36, percebo o quanto sempre estive certa. Com o isolamento social, o movimento de mulheres se assumindo tem crescido muito, porque é realmente uma libertação. Mas continuo sem encontrar na internet grandes referências de crespas grisalhas. A maioria delas é internacional. Eu entendo porque o preço é alto e alguns comentários nos deixam tristes. Mas é o que sempre digo: o que sempre me importou mais foi gostar do que eu vejo refletido no espelho".
Irlana Ferreira (@grisalhando), de 36 anos, estudante
"Acho que combina com o meu estilo"
"Comecei a ter cabelos brancos na adolescência. Nesta época, era impensável usar o estilo black. Então, lembro que minha mãe levava a mim e a minha irmã mais nova a um salão de beleza. Lá, fazíamos relaxamento com frequência e saíamos com os fios escovados. Com o passar do tempo os grisalhos foram aumentando, mas não me incomodava. Porém, um dia, decidi testar a tinta vermelha, porque achava que combinaria com a minha personalidade. Quando me vi ruiva, de um vermelho vibrante, me achei linda e mantive por muitos anos.
Em 2015, estava com uma viagem para a Europa marcada. Comprei os tubos de tinta com antecedência para levar e passar, para não sair nas fotos com a raiz natural aparecendo. Mas aquilo me cansou. De volta ao Brasil, decidi que não faria mais. E então entrei na fase mais punk, que é a transição. Ainda bem que já estava acostumada a usar turbantes e lenços. As pessoas olhavam torto, mas para ser sincera, eu nunca fui de ligar muito para a opinião dos outros. Ao final de um ano, estava toda grisalha.
No início até as pessoas mais próximas questionavam se eu não iria mais pintar. Existe aquele incômodo até que os outros se acostumem, mas uma hora acontece. Alguns anos depois, vi que cada vez mais mulheres estavam platinando o cabelo e deixando até branco. Incentivo muitas através das redes sociais a assumirem suas versões naturais. Mas sou da opinião de que precisamos fazer o que temos vontade, por isso não garanto que um dia não vou pintar de novo. O segredo é ter estilo, chegar nos lugares e erguer sempre o rosto".
Wladia Góes (@wladiagoes), 45 anos, figurinista
"A natureza sempre fala mais alto"
"Sou uma mulher preta que assumiu seus cabelos crespos sem o menor problema. Quando era pequena, alisava por influência da família, mas assim que tive autonomia suficiente, deixei que eles tomassem sua forma natural. Já ouvi muitas piadas, olhares estranhos e sorrisos de canto de boca por causa disso, mas honestamente nunca liguei. Por volta dos 30 anos comecei a perceber a presença de alguns fios brancos. Pouco tempo depois, comecei a pintá-los de vermelho. Não para escondê-los, mas porque achava a cor muito bonita. Mantive esse hábito por quase 20 anos. Porém, quando cheguei aos 50, era como se os fios estivessem pedindo para que eu parasse com aquilo. Já não tinham a mesma saúde. A natureza é mais forte do que qualquer coisa.
Foi simples tomar a decisão. Tinha como referência minha mãe, uma mulher feliz, bonita e tranquila, que assumiu seus grisalhos aos 40 anos. Mas é engraçado como o diferente tende a incomodar as outras pessoas. Não ouvi uma palavra de incentivo, só críticas. Diziam que iria ficar com cara de velha, de doente, infeliz, solitária, mal-amada. Mas eu estava tranquila. De lá para cá, já até raspei a cabeça. Acho uma sensação maravilhosa, poderosa, e que nos permite recomeçar literalmente do zero.
Hoje em dia sinto como se fosse o meu 'momento de vingança'. Com o movimento pela grisalhice, pela primeira vez passei a receber olhares de apoio, encantamento. Muitas pessoas nem acreditam que sejam meus fios naturais. Mas percebo que as mulheres estão compreendendo que o cabelo branco é vida, é beleza e ele não nos define. É somente uma forma de libertação, de impor um direito que é nosso por definição. Gosto dele dessa forma e pretendo seguir assim".
Mônica Jorge (@monicaguijor), 60 anos, dona de casa
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