Tainá Müller: "Abordar violência doméstica dá a sensação de dever cumprido"
"Good Morning, Veronica", "Buongiorno, Veronica", "Guten Morgen, Verônica"? Bom dia... Hum, acho que você já entendeu. Nesta quinta-feira (1/10), a atriz gaúcha Tainá Müller estreia simultaneamente em 190 países com a série baseada no livro homônimo de Raphael Montes. Ao lado de atores como Eduardo Moscovis e Camila Morgado, ela leva à Netflix um thriller policial de primeira qualidade que tem como pano de fundo uma discussão cada vez mais importante na sociedade atual: a violência contra mulher.
Na trama, Tainá vive a protagonista título, uma escrivã da polícia de São Paulo que mergulha em duas investigações para ajudar mulheres vítimas de violência doméstica. Universa assistiu aos primeiros episódios da série - que terminam com mensagens de como denunciar crimes contra a mulher, ao som de Elza Soares cantando "Maria da Vila Matilde" - ("Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180"... "Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim") - e conversou com a atriz sobre a importância de se discutir um tipo de crime que, infelizmente, só cresce: "trazer essa série nesse momento dá uma sensação incomum de dever cumprido na profissão, sabe? Não é só um trabalho legal, bacana, na Netflix, fazendo a protagonista: está alinhada com um propósito maior". Tainá falou sobre a decisão de sair da Globo, a luta pela causa do meio ambiente e como tem tentado fugir da polarização das redes sociais.
Como o papel da Verônica chegou até você?
Foi muito louco: eu estava numa festa e o Raphael Montes falou assim, por cima, que achava que eu tinha tudo a ver com uma personagem de um projeto que ele estava tocando. Não podia falar qual, mas me deu uns spoilers e eu já fiquei super interessada. Se passaram alguns meses, eu estava saindo do meu contrato longo com a Globo e pintou o convite para um teste. Depois de um tempo veio a resposta positiva. Quando falaram para mim que eu ia fazer a Verônica, corri pra ler o livro. Li antes de ler o roteiro e fiquei "Nossa! É sobre isso". Raphael é um gêniozinho, tem trinta anos e escreve muito. Ao lado da Ilana [Casoy, co-autora da série], formou uma dupla que casou muito, porque a Ilana é a voz da experiência na questão dos crimes.
Eles participaram ativamente das gravações?
Sim. A gente almoçava juntos, trocava altas ideias, debatia o tempo inteiro. É diferente fazer uma adaptação audiovisual de uma obra literária. E acho que o que foi legal desse projeto é que todo mundo se deu liberdade, inclusive eles, que eram os donos da obra. Eles não ficaram assim "ai não, isso aqui no livro tá assim, vamos fazer assim". A gente realmente construiu todo mundo junto ali, uma parada nova, baseada no livro. E eu ia me surpreendendo com o que eles falavam. A Ilana, por exemplo, tem muita experiência em casos reais. Muita. E ela dizia: "teve um caso que a mulher fez o mesmo que Janete (personagem da Camila Morgado)". Isso é o mais chocante.
Qual a importância para você de falar de violência doméstica de uma maneira tão didática, forte e para um público tão variado?
Nos últimos tempos, o assunto da violência doméstica ganhou uma importância ainda maior. O Brasil sempre foi um país bizarro nesse sentido, sempre teve altos índices de feminicídio, de violência doméstica, de estupro doméstico... Então, trazer essa série nesse momento dá uma sensação incomum, quase um dever cumprido na profissão, sabe? Que a gente está alinhada com um propósito maior. Não é só um trabalho legal, bacana, na Netflix, fazendo a protagonista. Tem uma coisa muito maior que a série. Talvez traga - e que bom se trouxer - foco para esse debate. Que bom se uma mulher que esteja passando por isso tenha a oportunidade de assistir à série, se identificar e agir a tempo. A série, nesse sentido, é até educativa: você vai vendo ali que a violência nem sempre é física, nem sempre é explícita, ela pode vir de uma palavra ou de um silêncio num lugar mais específico.
Além do tema maior que é a violência contra a mulher, a série fala de feminismo de várias maneiras: tem uma delegada que duvida da vítima por causa da sua vida sexual, tem a relação da filha pré-adolescente com a pressão estética... A trama passa pelos vários aspectos e dificuldades de ser mulher. Fala um pouco sobre isso:
Sim, tem essas outras camadas. A série é muito complexa. Isso eu achei muito legal e diferente. É um protagonismo feminino de um jeito que não me lembro de ter visto parecido no Brasil. Ao mesmo tempo, é muito louco que, em uma cena estou quase capotando o carro, com arma na mão, e na outra em casa, cuidando dos filhos. Mas essas mulheres existem.
Para se preparar para o papel da Verônica você conheceu essas mulheres?
Sim. Fui para a delegacia acompanhar e conhecer essas mulheres. Essas policiais que estão lá, fazendo operação, subindo a comunidade com o fuzil na mão. E vi como essas mulheres, assim como a Verônica, equilibram pratos para tentar dar o melhor de si no trabalho e em casa. Bem a vida da mulher contemporânea. Houve um momento em que eu estava acompanhando o trabalho de uma policial na delegacia e ela comentou comigo que estava com cólica, que naquele dia não estava legal. E aí veio o chefe dela falando assim: "Amanhã, todo mundo, seis da manhã tem operação". E ela prontamente respondeu: "Qual fuzil?" Ela, com aquela cólica, perguntando qual fuzil. Caramba. Eu tive uma compaixão por essa mulher.
Se já é difícil trabalhar no escritório com cólica, pensa o que é pegar um fuzil, subir numa comunidade, entrar na guerra com cólica?
Vivendo essa experiência tão intensa, você conseguia chegar em casa e se desligar da personagem, relaxar?
Foram semanas pesadíssimas. Eu não dormia direito. Eu ficava vivendo a Verônica nos sonhos. Era difícil desligar. Até porque a luta das mulheres é um assunto que é sensível para mim há muitos anos, não é uma coisa de agora. Por isso, eu fui intimamente tocada, envolvida. Quando eu entrei de fato nele, vendo essa realidade de uma forma muito mais crua do que a gente vê no jornal... Eu fiquei ainda mais sensível, vejo as notícias de feminicídio com outros olhos. É bizarro o quanto o machismo mata as mulheres todos os dias. Eu chorei muito durante o processo. Fiz todo um trabalho com o Sérgio Pena, preparador de elenco. O grande desafio era a Verônica segurar a onda. Eu tinha que segurar a emoção pra viver essa policial que tinha um objetivo claro, que estava trabalhando e não podia se envolver tanto emocionalmente.
Vendo esses crimes e essa realidade ainda mais de perto, tem como ter fé em alguma mudança? Como ter esperança de que o futuro pode ser diferente?
Eu acho que é a esperança da mudança, mesmo no trabalho de formiguinha, sabe? Eu acredito que água mole em pedra dura tanto bate até que fura. É difícil, mas a gente não pode desistir. Não é à toa que a palavra resistência, por si só, já traz um peso. Você resiste a algo que tem uma força muito maior do que aquilo que está te empurrando. Você está livre, firmando os dois pés no chão e tentando não ser arrastada por isso. Esse é o momento que a gente vive no Brasil e no mundo. É um momento muito complicado, caótico, talvez um dos mais intensos da história da humanidade. Temos que tentar se centrar. Aí é a meditação, espiritualidade, tudo isso ajuda. Mas também pensar que você não pode mudar o mundo sozinho, mas já ajuda se fizer um pouquinho a cada dia com suas escolhas. Dei tudo de mim para fazer essa personagem. Para mim, é uma coisinha que eu acrescento nessa luta. Através do meu trabalho estou movendo um pouco o mundo na direção que eu acredito.
A Globo vem revendo os contratos de muitos atores. Mas mesmo antes disso você já tinha optado por deixar de lado o contrato longo e optar no modelo por obra. É legal ver que essa sua decisão a levou para uma série da Netflix. Mas na hora de tomar essa decisão, deu medo?
Eu já vinha pensando sobre essa relação de contrato longo x contrato por obra há algum tempo, e por isso eu optei por seguir no segundo modelo. O mundo está mudando, nosso mercado está mudando, está mais globalizado mesmo, tem todas essas plataformas de streaming chegando... Aí achei que seria legal ter essa liberdade. E veio essa oportunidade de fazer "Bom Dia Verônica". Eu acredito que o universo recompensa os corajosos. Eu podia estar em Porto Alegre num puxadinho na casa dos meus pais. Em vários momentos da vida eu tive saltos de coragem para ver no que dava. Mas numa confiança de tomar as rédeas da própria vida. A maternidade me fortaleceu muito nesse sentido. De eu me sentir dona de mim. Claro que estruturei essa decisão, dediquei meu tempo e meu trabalho também na Globo. Tanto que depois rolou o convite para fazer "Mal Secreto" na Globoplay, que só não rolou ainda por causa da pandemia. Então, as portas estão todas abertas. Não foi uma loucura total. Mas foi a loucura que pude bancar. Eu só queria ter todas as possibilidades na frente para poder avaliar o que é melhor para mim em cada momento.
Você é muito ligada às causas ambientais. É embaixadora do Instituto Vida Livre e já foi representante também da WWF e da hora do planeta. Como vê tudo isso que estamos passando agora, desde as queimadas no Pantanal às brigas por terra na Amazônia?
Esse é um assunto no qual tem que ter estômago para entrar. Algo que eu pesquiso há muito tempo, há mais tempo do que o feminismo. Por isso, essas queimadas não estão me surpreendendo. Era o caminho. Não só na escolha que a gente fez de governo, que estava muito explícita que levaria a isso. Não é de agora. O Brasil foi tomando caminhos de monocultura, commodities de comida, já há alguns anos. É um plano econômico extrativista. Não é uma economia que investe em educação, em tecnologia e desenvolvimento de intelectual. A gente teria hoje no Brasil capacidade de tirar dinheiro da Amazônia de uma forma correta, com cultivo regenerativo. Nossa agricultura também poderia ser muito mais agroflorestal, que pensasse na perpetuação de sistemas e não em uma coisa que se esgota. O que me entristece é que o Brasil poderia estar no caminho de ponta no mundo. Mas está tudo sucateado. É assustador. Por outro lado, também estamos revendo várias coisas na nossa sociedade. Eu acho que a luta antirracista trouxe muita discussão que não existia há dez anos, assim como a luta feminista. Eu acho que a luta pela preservação do meio ambiente ter quer ser a luta mãe. Quando vamos falar de feminismo, temos que falar de ecologia, de racismo, idem. Se vamos falar de desigualdade social, temos que falar de ecologia. Está tudo debaixo desse grande guarda-chuva, que é o meio ambiente. Não adianta a gente pensar "queremos uma sociedade mais igualitária" se não vai haver sociedade.
Você se posiciona politicamente com frequência. Já sofreu muitos ataques?
Como se os artistas fossem responsáveis pela política brasileira...Eu acho que isso é um ataque pensado, sabe? Acho que tem gente até muito bem paga para pensar nessa estratégia. Entendo que, para o bem ou mal, os artistas têm muita influência na rede e o posicionamento da maioria dos artistas no Brasil é mais ou menos parecido. Eu sofri vários ataques por postar posições políticas. Nas eleições eu postei bastante, mas também depois dei um tempo porque vi que não adianta muito postar só para quem pensa igual a você, porque essa coisa do algoritmo realmente cria bolhas, uma polarização. Existe esse muro que parece intransponível. Eu acho que essa é a parte mais assustadora do que estamos vivendo. Quando você vê o que está acontecendo hoje nos Estados Unidos, a iminência de uma guerra civil não é um delírio. E como a gente espelha o que acontece lá, infelizmente assusta pensar o que pode acontecer aqui. Vivemos na era da pós-verdade. Eu, que além de atriz também sou formada em jornalismo, procuro pensar fora da caixa, buscar outras fontes. Mas mesmo assim, me pego pensando o que é verdade e o que não é. É um nível de manipulação tão grande que a gente se perde. Esse foi um dos motivos que me levou a querer voltar a estudar. Este ano comecei uma pós em Filosofia Contemporânea na PUC-RIO.
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