Pandemia faz estilistas brasileiros reverem produção, tecidos e como vender
Em tempos de coronavírus, a moda também precisou passar por readaptações. Coleções menores, reciclagem de tecidos e investimento em canais de venda online são as novas tendências do setor, que sinalizam que vieram para ficar. Mas além das questões práticas, estilistas também refletem sobre ciclos de tendências e sustentabilidade.
João Pimenta, um dos mais respeitados estilistas brasileiros e responsável pela marca de mesmo nome, conta que durante a pandemia, sua equipe adaptou a produção a que já tinha no ateliê. "Usamos um acervo grande de matéria-prima que estava guardada para seguir com as confecções. Foi uma ideia muito bacana, porque diminuímos o custo de produção e do produto final e reciclamos os tecidos que estavam parados."
Para além da pandemia, João defende uma moda mais consciente e sustentável e isso também inclui mudanças por parte dos consumidores. "No mundo pós-pandemia, acho que as pessoas poderiam pensar em consumir menos, de marcas menores e que produzam de forma mais responsável. Você pode comprar uma roupa em uma loja do seu bairro, por exemplo, onde conheça quem fez a peça", conclui.
O estilista explica que sua equipe decidiu reduzir bastante o volume de produção, para focar nos modelos que melhor sabe fazer. Além disso, a marca não pensa em seguir mudando as roupas da loja periodicamente, mas contribuir para um modelo de moda menos "descartável".
"Nossas peças precisam entrar na loja sem que a gente tenha que tirar as que vieram de coleções passadas. Estamos trabalhando a continuidade da nossa produção e tornando-a mais homogênea", afirma ele.
Moda limpa
A pandemia contribuiu para que estilistas e consumidores repensassem o modo de produção excessivo e acelerado da indústria têxtil. Segundo dados da Aliança das Nações Unidas para a Moda Sustentável, iniciativa da ONU, o setor é responsável por de 8% a 10% das emissões globais de gases-estufa. Além disso, US$ 500 bilhões são perdidos anualmente devido ao descarte de roupas.
João Pimenta não é o único que pensa em uma moda mais sustentável dentro do cenário da alta-costura brasileira. A conceituada estilista Fernanda Yamamoto, dona da marca de mesmo nome, usou o "upcycling", processo que desmonta peças prontas, para transformá-las em novas criações, como o principal destaque do desfile comemorativo de 10 anos de sua marca, realizado em outubro do ano passado na SPFW.
Neste período de pandemia, Fernanda continuou pensando no sustentável para dar continuidade às atividades do ateliê. "A mensagem que queríamos passar não era 'compre!', então começamos a fazer oficinas de modelagem, costura e criação pelo Instagram. Foi uma forma de manter contato com os clientes e de compartilhar nosso conhecimento."
Junto às oficinas surgiu a ideia de vender kits de costura, para que os clientes consigam criar uma peça de Fernanda Yamamoto dentro da própria casa, batizados de "Somamos".
"Esses kits contarão com tecidos, retalhos e aviamentos que não usamos nas coleções anteriores. Em uma segunda etapa, iremos ensinar o 'shibori', técnica de tingimento manual japonês, que consiste em amarrar o tecido para depois tingi-lo. E na terceira etapa, pensei em desenvolver a técnica de aplicação de carimbos", explica Fernanda.
Dentre o período atípico de produção, algumas mudanças podem ter vindo para ficar. "Pensamos em não lançar a próxima coleção toda de uma vez, a ideia é que a gente tenha algumas entradas, porque estamos produzindo em um ritmo diferente e é uma coleção muito menor. A tendência é que a marca continue trabalhando dessa maneira no futuro", indica.
Faturamento reduzido e vendas online
De acordo com dados divulgados pelo Boletim Regional do Banco Central, em abril deste ano, em uma comparação entre as duas primeiras semanas de abril e de março, o setor de vestuários e calçados vivenciou uma queda de 88,8% nas compras com cartão de débito.
Outra pesquisa, feita pelo Sebrae e pela FGV entre maio e junho, mostra que o faturamento do segmento de moda em relação a uma semana pré-pandemia sofreu queda de 57%, num universo de pequenos negócios.
Fernanda Yamamoto diz que sua marca também sofreu com baixas arrecadações neste período de crise. "O volume de vendas da coleção que lançamos em março foi muito abaixo do normal. No primeiro mês [abril] vendemos apenas 15% em relação ao que tínhamos vendido no ano passado, e em maio e junho as vendas continuaram baixas, vendemos cerca de 30%."
Para superar este período difícil, as marcas de alta-costura tiveram que se aliar a uma estratégia pouco utilizada anteriormente: as vendas online.
João Pimenta explica como foi essa readaptação em seu ateliê. "Antes da pandemia, a nossa loja online tinha poucas vendas e era pouco procurada. Agora, começamos a trabalhar com um esquema diferente: os clientes solicitam o que querem experimentar, mandamos as peças e o que não é vendido volta para a loja e é higienizado. Apesar de todo o trabalho, é o esquema que tem dado certo para nós."
A loja também fez um bazar online, com vários modelos em promoção, estratégia também utilizada por Fernanda Yamamoto, com venda de peças de coleções passadas e de desfiles.
Tempo de mudanças e expectativas
João Pimenta explica que a desaceleração que o período de pandemia trouxe o fez repensar os conceitos do seu trabalho.
Começamos a refletir se realmente estávamos seguindo os ideais da marca. Estávamos sempre falando em diversidade, mas isso ficava muito da 'boca pra fora'. Começamos a ampliar a modelagem das peças e a incorporar uma diversidade maior de profissionais dentro da nossa equipe João Pimenta, estilista
João iria desfilar uma coleção de muito destaque em abril, na temporada SPFW N49, mas o evento, como muitos outros, foi cancelado por conta da pandemia.
"No nosso desfile, os modelos estariam cobertos, não seria possível identificar se a pessoa por trás da roupa é branca ou negra, homem ou mulher. A gente percebeu que era um grande erro da marca ficar estipulando quem vai vestir as peças", explica.
"Com a pandemia, desenvolvemos ainda mais essa ideia. Percebemos que dá para mostrar quem vai usar as peças, mas precisa ter diversidade no desfile." Para ele, "as tendências da marca para o pós-pandemia são diversidade, conforto, preço justo e produção em pequena escala".
Fernanda Yamamoto segue em sentido semelhante. "Espero que depois dessa crise tenhamos uma moda mais consciente e que ela seja cada vez mais entendida como um vetor social e político."
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