"Eu passei por uma transição capilar e hoje me sinto inteira e feliz"
Depois de dezesseis anos alisando o cabelo — e testando todos os lançamentos possíveis de progressiva —, é a primeira vez que conheço meu cabelo de verdade. Comecei a fazer química aos 14 anos, enquanto ainda me dividia entre a vontade de brincar na rua e a necessidade de me encaixar nos padrões de beleza para ser bem aceita.
Padrão, para mim, sempre foi cabelo liso. Minha mãe é loira e tem cabelo assim. Meu irmão também. Eu sou a única da família com cabelo cacheado. E aquilo sempre soou como algo errado para mim.
Minha infância foi típica de quem tem alguma característica fora do padrão: sofrendo bullying e, consequentemente, detestando meus traços. Os meninos me chamavam de Bob (de Bob Marley), chapinha e coqueiro, por causa do formato dos meus fios. Minha mãe vivia falando que eu estava descabelada. Como minha mãe sempre teve cabelo liso, ela não sabia cuidar de cachos — e eu também nunca soube.
O dia a dia na escola e as férias de verão na praia sempre foram uma questão. Me sentia feia e tinha certeza que era assim que todos me viam. Eu odiava meu cabelo, achava que simplesmente não era apresentável sair com ele natural. Meu cabelo era sinônimo de sofrimento.
Eu sou a única da família com cabelo cacheado. E aquilo sempre soou como algo errado para mim.
A primeira química
Passei a adolescência escrava do salão: ia de duas a três vezes por semana para fazer escova. Quando minha tia apareceu com a novidade (na época chamada de escova japonesa) que prometia liso "definitivo", não pensei duas vezes. Ou melhor, ela não pensou duas vezes em me chamar para ir junto ao salão — ela estava levando as duas filhas, minhas primas, e sabia o quanto eu sofria com o formato original do meu cabelo.
Fiquei oito horas seguidas no salão. Os danos da química, do formol, ainda eram desconhecidos. O forte cheiro que automaticamente dava dor de cabeça e faziam com que meus olhos lacrimejassem sem parar, já denunciava a agressão. Mas nada disso importava.
Saí de lá me achando linda. Lembro direitinho da sensação. Uma forte liberdade, misturada com alívio e a esperança de, finalmente, viver minha adolescência em paz, como qualquer menina dentro do padrão. Mal sabia que, na verdade, estava iniciando um ciclo de total dependência da química.
Passei a fazer o alisamento a cada seis meses. Quando a raiz começava a crescer, era um desespero só. Fiz escova definitiva, japonesa, progressiva e o chamado botox capilar. Cada novidade que surgia era uma nova esperança de solução. Mas todas elas me causaram graves problemas. Eu desenvolvi um tipo de alergia à química: meu couro cabeludo chegava a sangrar. Passava dias com a pela próxima à raiz vermelha e descamando. Sentia muita dor de cabeça e meus gânglios inchavam.
O cheiro forte do formol dava dor de cabeça e faziam meus olhos lacrimejar — mas nada disso importava.
Depois de 15 anos, a transição
Acho que só fui me dar conta do tamanho da agressão que estava causando a mim mesma no começo do ano passado, aos 29 anos. A primeira vez que ouvi falar sobre transição capilar não quis nem saber. Mas ouvi tanto depoimento de gente que havia se redescoberto, que resolvi tentar. Afinal, não era natural eu ter o cabelo liso daquele jeito.
Comecei a seguir algumas influenciadoras que mudaram de vida depois de assumir os cachos. Paralelamente, minha alergia estava cada vez pior. Eu estava me machucando muito — por dentro (só consegui perceber isso agora, claro) e por fora.
Uma amiga do trabalho que decidiu passar pela transição comigo, isso me encorajou muito. Era como fazer dieta junto, sabe? Fica bem mais fácil. Minha prima também me apoiou muito, foi uma verdadeira coach. Fizemos juntas um diário da minha transição pelo WhatsApp, em que falávamos sobre as crises internas, as dificuldades práticas de lidar com o cabelo, descobertas de produtos, acessórios, enfim, tudo o que envolvia o processo de mudança.
Uma amiga do trabalho resolveu passar pela transição comigo — isso me encorajou muito
Um novo cabelo para entender e cuidar
Durante a transição aprendi a cuidar de cabelo cacheado do zero. Como e quando pentear, que produtos usar, penteados que funcionavam. Coisas que nunca fizeram parte da minha rotina de beleza porque desde que me lembro desses momentos de autocuidado, eles já eram voltados pro cabelo liso. Ou melhor, alisado.
Experimentei o cowash, lowpoo, alternar entre mais e menos dias de lavagens, até encontrar o que mais funcionava para esse meu novo momento. Cuidar dos fios é realmente essencial. "Nesse período é muito indicado seguir um cronograma capilar alternando tratamentos de nutrição, hidratação e reconstrução, além de apostar nos óleos finalizadores para devolver maleabilidade aos fios", explica o cabeleireiro André Monteiro, de São Paulo.
Foram várias recaídas ao longo dos oito meses de transição. Pensei em desistir e voltar a fazer química inúmeras vezes. É muito mais prático acordar com o cabelo liso. Os cachos dão trabalho — você não pode pentear o cabelo seco, não dá para prender de qualquer jeito porque ele fica marcado, precisa passar ativador senão eles não ficam definidos.
É como se recuperar de um vício: pensei em desistir várias vezes
Um dia de cada vez
O período de transição, quando uma parte do cabelo está cacheda e outra está lisa, é muito difícil. Se você alisa o cabelo totalmente, você destrói os cachos que estão se esforçando para se formar. Se você tenta cachear não dá certo, por causa da química. Depois entendi o porquê. "O alisamento cria uma espécie de película, que age como um escudo no fio do cabelo, impedindo que qualquer produto penetre na fibra e faça sua ação", me explicou André.
Para resolver o desconforto estético eu vivia com ele preso, de vez em quando usava faixa ou fazia trancinhas, mas não me sentia realmente bem de nenhum dos jeitos. É engraçado porque é totalmente comparável a um processo de desintoxicação, quase que se livrar de um vício mesmo. Eu precisei de apoio emocional. As pessoas tinham que me lembrar a toda hora que o pior tinha passado, que ia ser melhor para mim, o quanto a química estava me fazendo mal. Tudo isso me dava força para persistir.
Ter um profissional que te apoie nesse momento é muito importante também. Sempre que possível eu cortava as pontas para tirar, aos poucos, aqueles resíduos de química impregnado no comprimento dos fios. Segundo André, os cortes devem ser feitos a cada 45 ou 60 dias, para garantir que esse processo químico seja retirado de uma maneira eficaz e para ir mantendo o aspecto mais saudável durante o processo. Sentir os novos fios macios e nutridos também dá uma injeção de ânimo, já que a progressiva tira toda a vida do cabelo.
As pessoas tinham que me lembrar a toda hora que o pior tinha passado, que ia ser melhor para mim
O dia D
Oito meses depois, chegou o grande dia de fazer o big chop — o corte mais radical da transição, no qual tiramos, de uma vez, toda a parte com química. "Esse é o tempo médio que as pessoas demoram para concluir a transição, já que o cabelo cresce um centímetro ao mês", explica a tricologista Marcela Buchaim, do Spa do Cabelo Studio Tez, em São Paulo. Ficam, então, duas questões: um corte bem curtinho e ter que lidar com os fios cacheados. Dois aspectos fora do padrão a que somos impostas e que, inevitavelmente, causam estranhamento.
Eu sabia que as pessoas não estavam achando bonito. Eu percebia pelos olhares e os primeiros comentários não foram nada bons. "Ficou diferente, né?" —essa era a frase que eu mais escutava. Ninguém chegou para mim e falou, com sinceridade, que estava lindo. Ao contrário, perguntavam se eu tinha ficado doida. As pessoas não fazem por mal, só que isso é muito cruel porque você está em um momento de reconstrução de autoestima, tudo o que você menos precisa é da desaprovação das pessoas em volta.
Demorei para me acostumar com o cabelo cacheado. Precisei começar a acordar mais cedo para arrumar o cabelo antes de ir trabalhar. Ainda assim, nunca me sentia arrumada o suficiente. Alisar sempre foi sinônimos de arrumar os fios para mim. Reparei também que à noite, em festas e baladas, eu era vista de outra forma. Reparei até na mudança de perfil de pessoas que vinham falar comigo. A grande maioria das meninas sai à noite com o cabelo liso, isso ainda é muito forte no look festa.
Ninguém chegava em mim e me dizia que eu estava linda
Eu nasci assim
Mas, aos poucos fui começando a gostar. Não sei nem dizer se o meu cabelo voltou a ser como era antes porque eu havia perdido essa referência. Muita gente diz que o cabelo volta diferente, mas não é que a química frequente danifica o bulbo capilar. Seus fios de hoje podem não ser iguais ao da sua adolescência por muitos motivos, como mudanças hormonais ou na alimentação, stress e outras questões ligadas à saúde.
Entendi que a transição é um processo muito mais interno do que externo, uma quebra de paradigma mesmo. A partir do momento que você gosta e assume que vai colocar seus cachos no mundo, tudo muda. Você começa a bater no peito, ter orgulho dessa sua personalidade e acreditar que ela tem muito mais valor para você do que qualquer padrão que você vê por aí.
Quando você finalmente você se aceita, os outros passam a te aceitar também. De repente, os olhares mudaram. Os comentários foram se tornando mais empáticos. Os elogios, verdadeiros. Eu soube depois que foram justamente meus cachos (ou meu estado de espírito pós autoaceitação?) que chamaram a atenção do meu namorado atual, em uma dessas noites de cachos na balada.
Hoje, um ano depois do dia em que comecei a transição, estou mais feliz do que nunca. Me sinto inteira e feliz. Saber que não preciso me machucar para ser bonita, que a melhor versão de mim mesma é a natural, é libertador.
Entendi que a transição é um processo muito mais interno do que externo - a partir do momento em que você se assume, tudo muda
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