"Mulher não é prioridade do governo", diz pesquisadora sobre corte de verba
Há nove anos trabalhando em programas de enfrentamento à violência contra a mulher, a assistente social Ivanda Maria Sobrinha, de São Paulo, explica a precariedade dos serviços oferecidos com uma lembrança.
"Uma mulher chegou ao centro de referência em que trabalho com dois filhos, um adolescente e uma menina, e disse: 'Se eu voltar para a casa, vou morrer'. Não havia vagas em abrigos próximos. Então, liguei para uma amiga de uma cidade vizinha, também assistente social, que conseguiu um lugar para eles passarem a noite em uma casa de acolhimento de uma ONG", conta.
"Essa ONG, como outras que existem em municípios brasileiros, tem uma parceria com a prefeitura, que por sua vez recebe dinheiro do governo federal para esse tipo de programa. Quando há corte de verbas, esses acordos são os primeiros a serem extintos. Então para onde vamos levar essas mulheres que apanham do marido e não podem voltar para casa se não houver lugar para recebê-las?", questiona.
Por isso, Ivanda, lamenta que, em vez de aumentar a verba para melhorar o atendimento às vítimas de violência de gênero —os centros de referência, por exemplo, existem em apenas 20% dos municípios—, a previsão para o orçamento de 2021 seja de cortes na área.
A verba destinada à implementação de centros de atendimento e de unidades Casa da Mulher Brasileira (projeto que existe desde 2013 para oferecer, em um mesmo lugar, diferentes serviços às vítimas) deve ser de R$ 1 milhão, segundo a proposta de orçamento feita pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos para o ano que vem — valor 45% menor do que a proposta de 2020, segundo levantamento apresentado à Secretaria da Mulher da Câmara dos Deputados.
A Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres terá um orçamento 19% menor —passará de R$ 41 milhões para R$ 34 milhões em 2021. A pasta de Damares Alves, do qual a secretaria faz parte, foi procurada para explicar os motivos da diminuição da verba, mas afirmou, por email, que não comentará o tema até o orçamento ser aprovado no Congresso, o que deve acontecer em dezembro.
As políticas para mulheres ganharam força a partir de 2003, quando a secretaria voltada ao tema ganhou status de ministério, durante o governo Lula, explica Carolina Tokarski, especialista em políticas públicas do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). "A partir de então, o orçamento cresceu e vimos um fortalecimento das iniciativas se ações concretas na área", diz.
O montante, porém, começou a decair em 2015, durante o segundo mandato de Dilma Rousseff, e segue em queda desde então. "Houve o enxugamento das ações e, consequentemente, extinção de programas orçamentários. Antes, tinha várias ações no campo da autonomia econômica, da educação, além do combate à violência", afirma Carolina.
"Política pública sem orçamento não existe"
Em 1º de outubro, um dia depois da publicação do orçamento, Damares defendeu, durante o 2º Congresso Nacional de Prefeitos, em São Paulo, que houvesse maior investimento para estruturar as redes de proteção às vítimas de violência doméstica. Seu discurso, porém, não corresponde ao que foi proposto pelo ministério.
Em maio deste ano, Damares também lançou a Campanha de Conscientização e Enfrentamento à Violência Doméstica, com o objetivo de estimular as denúncias durante a pandemia, uma vez que os casos aumentaram em meio à quarentena.
"O discurso é importante, pois gera conscientização. Mas política pública sem orçamento não existe. Tem que ter manutenção da estrutura física e de recursos humanos. Com diminuição da verba, o resultado prático é a não execução de muitas ações", afirma Michelle Fernandez, especialista em políticas sociais e pesquisadora na UnB (Universidade de Brasília).
Para Michelle, as escolhas orçamentárias para 2021 mostram uma agenda do atual governo. "Apesar de ter o discurso de proteção das mulheres, vemos que essa não é uma prioridade. Ao analisar o orçamento proposto para o ano que vem, nota-se uma diminuição de investimentos em políticas sociais e um aumento de recursos para o Ministério da Defesa. Isso é uma decisão política", diz, referindo-se à alta de 4,7% para a pasta da Defesa em relação ao proposto para 2020.
Falta de verba vai frear implementação de novos projetos
A ajuda prestada por um centro de referência, como apoio psicológico e jurídico, para mulheres em situação de violência doméstica é apenas o primeiro passo de uma rede que precisa incluir, também, cursos de formação e de capacitação profissional.
"Muitas não se separam do agressor por causa da dependência econômica, por não estarem inseridas no mercado de trabalho. Se não tiver essa autonomia, mais difícil será conseguir sair da situação de violência doméstica que enfrentam", afirma Ana Claudia Victoriano, pedagoga e especialista em gestão de políticas públicas e gênero.
"O efeito dominó de um corte de verbas pode frear a implementação de projetos nessa área, que é extremamente importante para promover a independência financeira da mulher", explica Ana, que é uma das líderes do Justiceiras, projeto com mais de 700 voluntárias voltado para o atendimento a vítimas de violência em todo o país. "A gente tem se deparado com as situações mais precárias. Há municípios sem nenhum tipo de programa para mulheres. Com corte de custos, vai ficar ainda mais difícil."
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