O que tem de cultura do estupro nas mensagens de Robinho e amigos?
As transcrições de conversas telefônicas entre o jogador Robinho e amigos sobre a participação do atleta no ato que levou uma mulher albanesa a acusá-los por violência sexual, em Milão, na Itália, "corroboram a palavra da vítima de que ela foi abusada sexualmente mais de uma vez e por mais de uma pessoa", analisa a promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos, que atua à frente do Projeto Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos (Avarc), do Ministério Público de São Paulo. Os trechos fazem parte da sentença que resultou na condenação em primeira instância do atleta e de outro brasileiro, Ricardo Falco, a nove anos de prisão.
Universa ouviu especialistas, que atuam contra violência da mulher e crimes sexuais, para repercutir os trechos da conversa entre o jogador e os amigos em que eles comentam detalhes sobre o caso. Tanto a promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos quanto duas advogadas entrevistadas associam as declarações à cultura do estupro, que torna mulheres vítimas de crimes sexuais de forma recorrente.
Nas transcrições, publicadas com exclusividade pelo Globoesporte.com na manhã de sexta-feira (16), Robinho demonstrou saber que a vítima estava alcoolizada. As declarações tiveram repercussão nas redes sociais, entre os torcedores do Santos, que contratou Robinho recentemente, e na imprensa esportiva. Marcas patrocinadoras também cobraram uma posição do time paulista.
No início da noite, o atleta anunciou pelos Stories do Instagram a suspensão do contrato com o clube. "Com muita tristeza no coração, queria falar para vocês que tomei a decisão, junto com o presidente, de ter a suspensão do meu contrato nesse momento conturbado da minha vida. Meu objetivo sempre foi ajudar o Santos Futebol Clube. E se de alguma forma eu estou atrapalhando, é melhor que eu saia e foque nas minhas coisas pessoais. Para os torcedores do Peixão e as pessoas que gostam de mim, com certeza, eu vou provar para vocês a minha inocência", disse, na rede social.
Aviso: Universa reproduz, a partir daqui, as aspas que fazem parte da sentença do caso e foram divulgadas pelo site.
"A mulher estava completamente bêbada"
"Estou rindo porque não estou nem aí, a mulher estava completamente bêbada, não sabe nem o que aconteceu", disse o jogador, em resposta ao músico Jairo Chagas, que tocou na noite do ocorrido na boate de Milão, segundo as transcrições apresentadas pelo Globoesporte.com.
No Código Penal brasileiro, transar com uma pessoa bêbada não é só desrespeito; é crime de estupro de vulnerável. Na lei italiana, conforme o Globoesporte.com, é crime induzir alguém a ter ou sofrer atos sexuais "abusando das condições de inferioridade física ou psíquica da pessoa ofendida no momento do fato".
A advogada criminalista e especialista em violência contra mulher Adriana D'Urso explica que a confirmação de que a mulher estava embriagada na ocasião dos fatos, reportada por Robinho na conversa, é de grande importância para a investigação do caso.
"No ordenamento jurídico brasileiro, isso é enquadrado no artigo 217 A do Código Penal, ou seja, estupro de vulnerável, quando a pessoa não tem discernimento ou capacidade de consentir com o ato", explica.
Sexo oral sem consentimento também é estupro
Em outra conversa interceptada pela Justiça italiana, o atleta do Santos diz a Jairo que não transou com a vítima, apesar de o músico ter comentado que viu Robinho colocar o pênis dentro da boca da vítima.
Robinho: A polícia não pode dizer nada, eu direi que estava com você e depois fui para casa.
Jairo: Mas você também transou com a mulher?
Robinho: Não, eu tentei. (NOME DE AMIGO 1), (NOME DE AMIGO 2), (NOME DE AMIGO 3)...
Jairo: Eu te vi quando colocava o pênis dentro da boca dela.
Robinho: Isso não significa transar.
Adriana D'Urso afirma que desde 2009, no Brasil, estupro não é só tentar penetração sem consentimento da vítima. O crime deixou de ser reduzido à "conjunção carnal" para abranger outros atos libidinosos, como masturbação e sexo oral, sem o consentimento da outra parte ou quando ela é menor de 14 anos.
Apesar de o crime não ter acontecido no Brasil, diz a advogada, é importante que a mulher que já foi vítima ou que pode passar por uma violência sexual desse tipo saiba disso e tenha respaldo na lei para denunciar. "Casos como o de Robinho são importantes para encorajar outras mulheres que são vítimas a denunciarem e para que os homens percebam que precisam deixar de agressivos, porque isso tem consequências. É crime, e não é algo que pode ser feito só porque é homem".
Cultura do estupro
Em outro trecho de conversa entre Robinho e Jairo Chagas, no qual os nomes dos outros envolvidos não foram publicados, o jogador diz que pelo menos cinco homens estavam "em cima" da vítima.
Robinho: Olha, os caras estão na merda... Ainda bem que existe Deus, porque eu nem toquei aquela garota. Vi (NOME DE AMIGO 2), e os outros foderam ela, eles vão ter problemas, não eu... Lembro que os caras que pegaram ela foram (NOME DE AMIGO 1) e (NOME DE AMIGO 2).... Eram cinco em cima dela.
Para outro amigo, identificado como "Amigo 4" na transcrição, Robinho relatou que o grupo tinha conversado sobre quem tinha "gozado dentro da mulher" e se ela estaria grávida.
Robinho: Telefonei a (NOME DE AMIGO 3), e ele me perguntou se alguém tinha gozado dentro da mulher e se ela engravidou. Eu disse que não sabia, porque me recordo que eu e você não transamos com ela porque o seu pênis não subia, era mole... O problema é que a moça disse que (NOME DE AMIGO 1), (NOME DE AMIGO 2) e (NOME DE AMIGO 3) a pegaram com força.
Para as especialistas ouvidas por Universa, o caso é um nítido exemplo de manutenção da cultura do estupro, em que o homem justifica seus comportamentos abusivos e violentos por considerar a mulher como um objeto sexual que está à disposição para satisfazer o prazer dele.
A advogada Rubia Abs da Cruz, Mestre em Direitos Humanos e integrante do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM Brasil), chama atenção para o comportamento naturalizado de que "se uma mulher bebeu, ela está disponível para ter relações sexuais, e com todos eles".
"No diálogo, eles até têm consciência de que poderia ser considerado estupro, mas colocaram a mulher como um objeto, inclusive se preocupando com quem gozou dentro ou não", comenta. "Não aconteceu no Brasil, mas tem relação com a história do que é visto como consentimento aqui, já que temos um passado de mulheres indígenas e negras que foram estupradas e, até hoje, temos casos de estupro de mulheres dentro do casamento. É por existir essa cultura".
No futebol, opina Rubia, o estereótipo de "Maria chuteira" e a suposição de que os jogadores "podem tudo, que estão acima da lei" reforçam essa lógica. "Há algo de pejorativo nisso, como se a mulher que está em uma festa bebendo com eles sempre buscasse isso".
A cultura do estupro é fortemente baseada em estereótipos machistas que recaem sobre as mulheres, culpabilização da vítima em crimes sexuais e objetificação do corpo feminino.
Por que cultura do estupro diz respeito aos homens?
Para a promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos, é urgente que a cultura do estupro seja combatida em pelo menos duas frentes: o acolhimento da vítima pela sociedade e o posicionamento aliado de homens contra a violência sexual. "É preciso ter consciência de que os corpos das mulheres não estão à disposição para serem usufruídos pelos homens, e que temos o direito à liberdade e à dignidade sexual preservado."
Rubia acrescenta que o fim desse comportamento passa pela igualdade de direitos e mudança do pensamento masculino sobre vítimas. "E não é só porque o homem tem filha, esposa, mãe. Nenhuma mulher pode ser violentada. Se um deles tivesse dito: 'Para, cara, ela está bêbada, tem tantas outras que a gente pode ficar', as coisas seriam diferentes. É preciso que o homem enxergue a mulher como um ser que tem igualdade de direitos".
Repercussão e desdobramentos do caso
Após a revelação das transcrições, a empresária e advogada Marisa Alija Ramos e o advogado Luciano Santoro, representantes de Robinho, divulgaram comunicado afirmando que as conversas "não foram corretamente traduzidas para o idioma italiano" e que o jogador "reitera que não cometeu o crime do qual é acusado e que sempre que se relacionou sexualmente foi de maneira consentida".
Advogados ouvidos pela coluna Lei em Campo, do UOL, afirmam que o Santos poderia rescindir o contrato com Robinho, caso tenha interesse, diante da publicação das transcrições. Patrocinadores do clube anunciaram que podem rescindir o contrato caso o atacante permaneça no Santos.
Segundo a reportagem do Globoesporte.com, a decisão do Tribunal de Milão que condenou o jogador e Ricardo Falco em primeira instância por violência sexual, em novembro de 2017, foi contestada pela defesa dos dois. A análise do processo em segunda instância será iniciada em 10 de dezembro. O caso aconteceu em janeiro de 2013, na boate Sio Café, em Milão.
A advogada Adriana D'Urso pondera que existe a presunção de inocência até que se confirme a sentença e ocorra o trânsito em julgado (quando não existe mais possibilidade de recurso). "Ele é acusado de um crime, e uma prova pode surgir para torná-lo inocente".
A promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos destaca que há chance de os acusados serem punidos no Brasil por conta do processo na Itália, já que o artigo 7 do Código Penal garante que crimes como esse, mesmo cometidos fora do país, podem ficar sujeitos à lei brasileira.
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