País tem um estupro a cada 8 minutos, diz Anuário de Segurança Pública
Lançada sob o contexto da pandemia da covid-19, a 14ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra mais uma vez que a violência de gênero não tem freio: os homicídios dolosos de mulheres e os feminicídios tiveram crescimento no primeiro semestre de 2020 em comparação com o mesmo período do ano passado. Entre os homicídios dolosos, quando há a intenção de matar, o número de vítimas do sexo feminino aumentou de 1.834 para 1.861, um acréscimo de 1,5%. Já as vítimas de feminicídio foram de 636 para 648, aumento de 1,9%. Os dados foram compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, baseados em informações das Secretarias Estaduais de Segurança Pública e/ou Defesa Social dos estados.
Se na edição de 2015 do anuário os pesquisadores mostraram que havia um estupro a cada 11 minutos no país, a edição deste ano mostra que um crime do tipo foi registrado a cada 8 minutos em 2019: foram 66.123 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável registrados em delegacias de polícia apenas no ano passado, e a maior parte das vítimas é do sexo feminino —cerca de 85,7%. Em 84,1% dos casos, o criminoso era conhecido da vítima: familiares ou pessoas de confiança.
Ainda assim, apontam os pesquisadores, os registros de estupro e estupro de vulnerável recuaram 11,8% e 22,5%, respectivamente, na comparação do ano de 2019 com o período anterior. Outras quedas foram observadas nesse intervalo: os crimes de lesão corporal dolosa e ameaça contra vítimas do sexo feminino apresentaram redução de 9,9% e 15,8%.
Já os registros de lesão corporal em decorrência de violência doméstica aumentaram 5,2%. Durante todo o ano de 2019, foi registrada uma agressão física a cada dois minutos: um total de 266.310.
Entre as vítimas, bebês de 0 a 4 anos
Apesar da queda no número total de estupros, de 66.907 para 66.123 entre os anos de 2018 e 2019, os pesquisadores não consideram o saldo positivo. No documento, eles atentam para casos de subnotificação, em que as vítimas não procuram as autoridades seja por medo, sentimento de culpa e vergonha ou até mesmo por desestímulo por parte das autoridades.
Desses casos de violência sexual, 70,5% foram registrados como estupros de vulnerável, quando a vítima é menor de 14 anos ou não consegue oferecer resistência ao ato, porque está alcoolizada ou por uma enfermidade, por exemplo.
A faixa etária das vítimas de estupro e estupro de vulnerável indica que 57,9% delas tinham no máximo 13 anos no momento do registro, um crescimento de 8% em relação ao verificado na edição anterior.
"Embora a maioria das vítimas tenha entre 10 e 13 anos, chama a atenção que 18,7% tenham entre cinco e nove anos de idade, e que 11,2% são bebês de zero a quatro anos", destacam os pesquisadores.
Recentemente, Universa revelou o caso de uma adolescente de 13 anos que foi estuprada dos nove aos 12 anos pelo próprio pai, na casa onde vivia com ele, a mãe e mais duas irmãs em Mombuca, a 136 quilômetros de São Paulo. E depois que a polícia de Capivari prendeu o criminoso, em fevereiro deste ano, ela ainda sofreu mais uma agressão: um pastor evangélico, que atuava como Guarda Municipal, também abusou dela.
Perfil das vítimas
Se entre as vítimas de estupro do sexo masculino, os casos estão mais concentrados durante a infância, entre as vítimas do sexo feminino a violência sexual acontece mais frequentemente durante a adolescência. A maioria dos casos entre as vítimas do sexo masculino se dá aos quatro anos de idade, enquanto entre as vítimas do sexo feminino isto acontece aos 13 anos.
Além disso, entre as vítimas do gênero feminino, é maior o percentual de casos na vida adulta: enquanto 24,4% das mulheres vítimas de estupro em 2019 tinham mais de 18 anos quando o crime ocorreu, essa proporção foi de 15% entre os homens.
Ao verificar o perfil racial, há uma prevalência de mulheres brancas entre as vítimas —54,9%—, ao passo que as vítimas pretas e pardas somam 44,6%. Amarelas e indígenas são 0,5% do total.
Em relação ao período no qual a violência ocorreu, 64% dos casos de estupro de vulnerável ocorrem no período da manhã ou da tarde, possivelmente no momento em que pais ou responsáveis se ausentam para o trabalho e em que as vítimas ficam mais vulneráveis, afirmam os especialistas. Os demais estupros, que envolvem em sua maioria mulheres adultas, ocorrem 56% das vezes no período da noite ou de madrugada. Os analistas concluem:
O que os dados compilados por esta edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam é que, com urgência, o tema precisa ser alçado não só a uma prioridade governamental, mas entrar efetivamente no rol de ações reconhecidas pelas polícias como integrantes de suas missões e tarefas. As polícias não podem continuar a achar que este é um tema privado e/ou que pouco podem fazer.
Importunação sexual
Esta edição também traz dados do crime de importunação sexual, incluído no Código Penal em 2018. Nele, o crime é imputado a quem "pratica contra uma pessoa e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro". Um exemplo são os casos de assédio no transporte coletivo.
No primeiro ano completo de vigência da lei, 2019, foram registrados 8.068 casos de importunação sexual no Brasil, uma taxa de cerca de 6,6 vítimas para cada 100 mil habitantes.
Violência doméstica e a pandemia
Numa comparação entre o primeiro semestre de 2020 com o mesmo período de 2019, foi verificado que os registros de denúncias de violência de gênero caíram: houve redução de 10,9% nos boletins de ocorrência de lesão corporal dolosa, 16,8% nos de ameaças, 23,5% nos estupros de mulheres e 22,7% nos estupros de vulneráveis. Crimes esses, apontam os analistas, que dependiam principalmente da presença física da vítima nas delegacias, em especial os de estupro, que demandam também exame pericial.
Nesse mesmo período, em comparação com o primeiro semestre de 2019, houve um aumento de 0,8% nos homicídios dolosos de mulheres e 1,2% nos casos registrados como feminicídios. E as ligações para o 190 registradas por violência doméstica cresceram 3,9%.
"A presença mais intensa do agressor nos lares constrange a mulher a realizar uma ligação telefônica ou mesmo de dirigir-se às autoridades competentes para comunicar o ocorrido", afirmam.
"Infelizmente, é fato que o Brasil perdeu, entre 2019 e 2020, uma grande oportunidade de transformar a tendência de redução das mortes violentas intencionais observada entre 2018 e meados de 2019 em algo permanente e que servisse de estímulo para salvar ainda mais vidas", observam os pesquisadores envolvidos no levantamento.
Faltam dados sobre racismo e lgbtfobia
Os pesquisadores fazem uma crítica à falta de dados sobre crimes de injúria racial, racismo e discriminação contra a população LGBTQ+. Segundo o Anuário, sete estados (Acre, Alagoas, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Piauí e Rondônia) não disponibilizaram informações sobre racismo. A Paraíba afirma não ter registrado qualquer caso entre 2018 e 2019, e Sergipe ofereceu somente dados referentes ao ano passado.
As taxas observadas, eles apontam, são bastante reduzidas. No total, os pesquisadores puderam levantar 11.467 registros de injúria racial e 1.265 casos de racismo em 2019.
Quanto à população LGBTQ+, somente uma minoria dos estados foi capaz de produzir dados referentes a violência contra essas pessoas. Dos 26 estados além da capital, apenas 13 responderam sobre o crime de homicídio, 12 sobre estupro e 10 sobre o crime de lesão corporal dolosa. No total, foram somados 84 homicídios em 2019, 584 registros de lesão corporal dolosa e 55 de estupro.
Feminicídio
Após a promulgação da Lei do Feminicídio, em 2015, o registro desse tipo de crime cresce exponencialmente: os casos registrados passaram de 929 em 2016, primeiro ano completo de vigência da lei, para 1.326 em 2019 —um aumento de 43% no período.
Dessas vítimas, 66,6% eram negras. O Atlas da Violência 2020 já havia mostrado que, em 2018, a taxa de homicídio de mulheres negras foi quase o dobro da de mulheres não negras. E que enquanto a taxa de homicídio de mulheres não negras caiu 11,7% no período, a taxa entre as mulheres negras aumentou 12,4%.
A maior parte dos casos se concentra entre mulheres em idade entre 20 e 39 anos: essas representam 56,2% das vítimas de feminicídio em 2019, e o tipo de arma mais utilizado para tirar suas vidas é a arma branca (como faca). Em 2019, 53,6% foram mortas com a utilização de arma branca, 26,9% com armas de fogo e 19,5% por outros meios (como agressão física e asfixia mecânica).
Observou-se ainda que 58,9% dos feminicídios ocorreram em casa e que em 89,9% dos casos o autor do crime é um companheiro ou ex-companheiro da vítima.
"O fato de ocorrerem no âmbito doméstico e familiar, espaço do qual se espera segurança e confiança, torna estes casos mais cruéis e desafiadores para o desenvolvimento de políticas públicas de prevenção", concluem os analistas.
Violência contra crianças
No ano em que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) completou três décadas da sua primeira publicação, o Anuário se debruçou ainda sobre as mortes violentas intencionais e estupros de crianças e adolescentes. No ano passado, foram registrados 4.928 casos de mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos. Nacionalmente, a taxa de mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes em 2019 foi de 2,95 por 100 mil habitantes.
Quanto aos estupros, foram 25.984 casos contra crianças e adolescentes de 0 a 19 anos, o equivalente a uma taxa de 21,53 por 100 mil habitantes. Mas apenas 11 estados, além do DF enviaram essas informações. Eles representam 57,41% da população nacional. Portanto,
a cobertura desses dados é significativamente menor do que as informações que tratam das mortes violentas intencionais, concluem os pesquisadores:
"Deveria causar choque que em 2019 foram quase 5.000 crianças e adolescentes mortos de forma violenta e intencional e quase 26 mil que sofreram estupro", afirma, após citarem as mortes violentas de João Pedro Mattos, de 14 anos, e da menina Ágatha Vitória Sales Félix, de 8, em comunidades do Rio de Janeiro, e ainda o caso da menina de dez anos, que ficou grávida do próprio tio, no Espírito Santo.
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