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"Revelar surdez foi libertador", diz Benedita, filha de Regina Casé

Benedita Zerbini, que foi diagnosticada com surdez aos 4 anos - João Pedro Januário/Arquivo pessoal
Benedita Zerbini, que foi diagnosticada com surdez aos 4 anos Imagem: João Pedro Januário/Arquivo pessoal

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

21/10/2020 04h00Atualizada em 23/10/2020 12h13

Benedita Casé Zerbini foi diagnosticada como surda aos 4 anos e, desde então, depende de aparelhos auditivos e leitura labial para se comunicar. Assim como eu, Benedita é uma surda que ouve — o termo, que pode parecer paradoxal, se refere a pessoas que têm alguma perda auditiva, mas não são completamente surdas: desenvolveram a fala e conseguem se comunicar sem a ajuda de Libras (língua brasileira de sinais).

Por conta da deficiência, Benedita e seus pais, Regina Casé e o artista Luiz Zerbini, ouviram muitos "nãos". Entre eles: não vai desenvolver a fala, não vai estudar numa escola regular, não vai fazer faculdade, não vai trabalhar com audiovisual. Pois bem: Benedita fez todas essas coisas e hoje, aos 31 anos, é diretora de cinema - relatos com os quais eu, repórter diagnosticada com surdez um pouco mais tarde, aos 10, não pude deixar de me identificar. Ela também é mãe de Brás, de 3, seu "maior orgulho".

Levar a surdez a conhecimento do público, ela conta, transformou sua vida: "Deixei de viver muita coisa por medo. Quantas vezes eu saí para tomar um chopp depois do trabalho e acabava indo embora porque, naquele ambiente [um bar escuro e barulhento], eu não conseguia me comunicar?", conta.

Nesta entrevista, ela fala sobre a falta de conhecimento das pessoas sobre uma deficiência que nem sempre é visível, a dificuldade para desenvolver a fala sendo surda e os desafios para fazer leitura labial, seu "superpoder de comunicação", especialmente durante a pandemia, quando todo mundo sai às ruas com a boca coberta.

UNIVERSA: Você demorou para abrir para amigos, professores, colegas de trabalho sobre a surdez. Por quê?

BENEDITA CASÉ ZERBINI: Eu demorei sim para abrir e digo que ainda estou nesse processo, porque não é uma coisa simples. No meu caso eu tive muita vergonha, um pouco de medo do que os outros iriam pensar, e também um pouco de preguiça de interromper um professor ou parar no meio uma reunião de trabalho para falar sobre a minha deficiência. Numa roda de amigos, quando você não tem muita intimidade ainda, você não sabe se o outro vai entender, se os colegas vão continuar te respeitando enquanto profissional.

Essa mistura de vergonha, medo e uma certa preguiça existe para qualquer pessoa com deficiência porque as pessoas têm dificuldade de lidar, têm preconceito, não respeitam. E eu não gostava da ideia de pena, que ainda é muito associada às pessoas com deficiência. Eu pensava "puxa, não quero estar nesse lugar", e isso me atrapalhou muito.

Eu tinha uma sensação de que, falando sobre a surdez, eu ia atrasar a turma, então preferia passar batido e pensar "vamo embora, vou me virando", mas muitas vezes era um esforço muito grande.

Benedita Zerbini - João Pedro Januário/Arquivo pessoal - João Pedro Januário/Arquivo pessoal
Imagem: João Pedro Januário/Arquivo pessoal

Depois de 30 anos sem abordar a surdez fora do seu círculo mais próximo, o que fez abrir o jogo no ano passado?

Eu estava lendo uma revista, me deparei com uma entrevista com a Paula Pfeifer [criadora do Surdos Que Ouvem e do blog Crônicas da Surdez] e aquilo me tocou muito. Pensei: "eu sou uma surda que ouve, preciso encontrar essa mulher". Marcamos um café e, quando a gente se deu conta, tinha esquecido do tempo e passado quatro horas conversando.

Meu encontro com a Paula foi muito importante, eu vi ali uma pessoa que se identificava com muitas questões minhas, passava pelas mesmas coisas que eu, e fiquei muito animada. Na ocasião, ela me convidou para gravar um vídeo para o Surdos Que Ouvem. Voltei para casa com aquilo na cabeça, contei pra minha mãe e ela também ficou muito emocionada, porque foi a primeira vez que eu tive uma troca de verdade.

A minha mãe foi uma pessoa que sempre insistiu muito para que eu me colocasse nas situações, para que eu chegasse nos lugares, no trabalho, na escola, numa roda de amigos, em qualquer situação, e dissesse "eu uso aparelho, se você falar olhando para mim vai ser mais fácil", mas eu sempre tive dificuldade. Aos poucos fui entendendo que ela estava certa e que aquilo facilitaria a minha vida. E então eu decidi falar, e logo depois veio o convite para o Bial [programa Conversa com Bial, exibido em setembro de 2019].

E o que mudou na sua vida depois de tornar pública a deficiência?

Falar facilitou as coisas. Algumas pessoas nem sabiam da minha surdez, e mesmo as pessoas bem próximas que sabiam da deficiência não tinham ideia das dificuldades, justamente por esse meu medo da vitimização. Você imagina como mudou para mim? Todas essas pessoas que não sabiam do problema passaram a se comportar de forma diferente, a ter mais atenção para isso, se preocupar em falar olhando para mim, para facilitar a leitura labial, por exemplo.

Na faculdade eu não conseguia levantar a mão para falar com o professor e pedir que não desse aula com a luz apagada, então fui empurrando e, por isso, tranquei as mesmas matérias diversas vezes.

Mais tarde, num curso de roteiro, já adulta, eu consegui levantar a mão e pedir: "Tem como acender a luz?". Mas é um processo até fazer essa pergunta. "Puxa, vou interromper a aula? Será que ele vai entender?", mas no final a turma toda mostrou essa preocupação: quando o professor esquecia de ligar a luz, outras pessoas pediam. Vê como facilita?

Eu sei que não é fácil, mas é que é libertador. Eu deixei de viver muita coisa por medo. Situações em um restaurante barulhento, mais escuro, também foram inúmeras. Quantas vezes eu saí para tomar um chopp depois do trabalho, comemorar alguma coisa, e acabei indo embora porque, naquele ambiente, eu não conseguia me comunicar. Quando eu não tinha intimidade com as pessoas, eu inventava um compromisso e ia embora, porque não tinha coragem de falar.

De que formas essas dificuldades, como não entender as pessoas ou não conseguir frequentar certos lugares, marcaram sua infância e sua adolescência?

As pessoas têm muita dificuldade de lidar. Passei por muitos casos de gente falar comigo gritando, fazendo mímica, ou se referindo à pessoa que está do meu lado sem nem tentar se comunicar comigo. Esse é o ponto: as pessoas esquecem que tem um ser humano ali. Elas enxergam primeiro a deficiência, depois a pessoa, e não o contrário. Quando eu era mais nova, por exemplo, não aceitava ser chamada de surda porque, naquele momento a palavra "surda" vinha como um xingamento.

Outra coisa que eu me lembro bem de ter levado a preconceito é o que as pessoas chamam de "sotaque", que na verdade é a dificuldade que os surdos têm em falar. Existe uma diversidade enorme na surdez, e muitos níveis também, leve, moderado, severo. Cada um tem a sua maneira de comunicar, seu desenvolvimento de fala, mas é muito difícil a gente reproduzir um som que a gente não consegue ouvir. No meu caso, eu não ouço com precisão as consoantes, então o F é difícil, o X, o Z. Eu sofri muito preconceito mesmo tendo um bom desenvolvimento oral pro tamanho da minha perda. As pessoas perguntam de onde eu sou, se eu sou gringa, mas muitas vezes de uma forma agressiva.

Regina e Benedita Casé - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

Regina e Benedita Casé - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

Como a maneira como seus pais lidaram com a deficiência e abordaram o tema em casa te ajudou a encarar esses percalços?

Eu não sei dizer se o assunto era abordado em casa, era uma coisa natural. Minha mãe sempre lidou muito bem com a deficiência, fez questão de me inserir em tudo, e eu vejo a importância disso hoje com o Brás, meu filho. Eu tinha alguma dificuldade com o aparelho, com as aulas. Meus pais colocaram isolamento acústico na escola, eu tive esse privilégio. A sala de aula é um ambiente muito barulhento, quando você arrasta cadeira, por exemplo, é um barulho ensurdecedor [para quem usa aparelho auditivo], lembro bem disso. Também tinha conversa paralela dos amigos que me atrapalhava bastante. Eles conversaram com a escola, colocaram aquela espuma de isolamento acústico na classe e a minha turma era a única que não trocava de sala entre as aulas por conta disso. Além da luta dos meus pais, houve muita luta da escola também para me incluir.

Você estudou numa escola tradicional, mesmo que seus pais tenham sido orientados a buscar uma escola específica para surdos. Quais consequências essa decisão trouxe para sua vida?

Esse é um tema muito delicado, é uma decisão muito difícil para os pais. Cada caso é um caso. Mas meu pais acreditaram muito, e eu acredito hoje, na importância de conviver com a diversidade, não só na questão dos surdos, mas de gênero, cor, idade. É importante entender que atender a uma pessoa deficiente não é uma caridade da escola, é uma troca pra todo mundo: a escola ganha com isso, a empresa ganha com isso. Sou a favor que todas as escolas tenham preparo para receber as crianças surdas como elas devem ser recebidas.

Eu não julgo pais que tomam a decisão de colocar os filhos em escola especial, mas para mim foi muito importante [estar na escola regular].

Eu ouvi médicos afirmarem, lá no início do diagnóstico, que eu só poderia me comunicar com Libras (língua brasileira de sinais) e que eu não desenvolveria a fala, mas meus pais se perguntaram "será?" e tentaram até o fim. Isso foi fundamental para mim.

Tenho certeza que não teria me desenvolvido tão bem convivendo apenas com outras crianças surdas. Se a gente ficar só separando, separando, separando, como as pessoas vão se relacionar?

Benedita Zerbini - João Pedro Januário/Arquivo pessoal - João Pedro Januário/Arquivo pessoal
Imagem: João Pedro Januário/Arquivo pessoal

Além do "não" que você ouviu dos médicos, o que mais foi dito que você não poderia fazer sendo surda?

Foram muitos não ao longo da vida, mas eu gosto muito de duvidar deles e isso aprendi com meus pais. Eles duvidaram desde que receberam o diagnóstico. A gente escutou de tudo: que eu não ia conseguir estudar de forma regular, me formar na faculdade, trabalhar com audiovisual. Eu fiz tudo isso. Hoje eu sou diretora, tenho uma produtora [Beijo, em parceria com o marido, o fotógrafo João Pedro Januário], trabalhar com audiovisual era uma coisa muito distante para mim. É até curioso porque, quando eu trabalhei na Globo, no Esquenta, passei cinco anos fazendo pesquisa musical. "Nossa, mas você é surda e trabalha logo com música?". Sim. Eu era responsável por todo o repertório musical do programa.

E, até agora, qual é a coisa que você mais se orgulha de ter feito?

Além da minha carreira, consegui falar em público, dar palestras. Eu me lembro quando dei uma palestra, em um festival, tinha muita gente. Quando subi no palco pensei "meu Deus, eu vou falar em público". Para mim era uma coisa muito difícil, eu tinha vergonha de falar por conta do "sotaque", e a ocasião era um evento no Auditório Ibirapuera [em São Paulo], para um público de empresa, gente engravatada sentada para ouvir o que eu tinha para dizer.

Eu não posso deixar de falar do Brás. Eu sempre quis ser mãe, tinha loucura por isso, mas tinha muitas inseguranças porque, por não ouvir frequências mais agudas, eu não escutava o choro do meu filho. Eu pensava "como vai ser isso?". E esse talvez seja o meu maior orgulho: conseguir criar o meu filho.

Você e o João falam sobre surdez com o Brás, em casa? De que forma vocês abordam a diversidade na educação dele?

Existe essa preocupação, mas tudo acontece de forma muito natural. Ele sabe o que eu passo, conhece as minhas dificuldades, vê o aparelho, tira, coloca, e entende que esse é o normal, sabe? Eu explico para ele, por exemplo, "não dá pra falar um segredo pra mamãe no ouvido, fala olhando pra mim". Ou quando a gente brinca de telefone sem fio do meu jeito, sem tapar a boca para não abafar o som. Com isso, ele entende e me ajuda muito.

Quando toca o telefone, ele me avisa. Quando ouve um barulho diferente, ele pergunta se eu também estou escutando. Essa é a melhor forma de educar. Aquelas inseguranças que eu senti quando descobri que seria mãe se transformaram: o Brás me ajuda muito mais do que eu poderia imaginar. Ele é meu terceiro ouvido.

Benedita filho - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Imagem: Reprodução/Instagram

E agora, neste período de pandemia, as pessoas precisam usar máscara. Como você tem se comunicado neste momento, em que a leitura labial, sua principal ferramenta de comunicação, fica inviável?

Essa questão é gravíssima agora na pandemia, e eu estou com muita dificuldade mesmo. Eu e todos os surdos. É enlouquecedor ter todo mundo na rua sem poder ver a boca, com as máscaras na frente. Dificulta o que já era difícil. E você não pode pedir para tirar a máscara, claro, então o caminho que eu vejo e tento divulgar é a máscara transparente. Eu procuro sempre andar com a máscara transparente, ando com algumas, o máximo que eu consigo carregar, para distribuir, mas não é todo mundo que pode fazer isso.

A questão das máscaras é uma falta de conhecimento que vem lá do início, não só nesses sete meses de pandemia. As pessoas não têm conhecimento mesmo, e por isso não têm essa preocupação, mas a gente tem que tornar todos os produtos acessíveis, isso vale para máscaras, para legendas em filmes.